Vivendo e...
Eu sabia fazer pipa e hoje não sei mais. Duvido que
se hoje pegasse uma bola de gude conseguisse
equilibrá-la na dobra do dedo indicador sobre a unha do
polegar, quanto mais jogá-la com a precisão que tinha
[5] quando era garoto. (...)
Juntando-se as duas mãos de um determinado jeito,
com os polegares para dentro, e assoprando pelo
buraquinho, tirava-se um silvo bonito que inclusive
variava de tom conforme o posicionamento das mãos.
[10] Hoje não sei mais que jeito é esse. Eu sabia a fórmula
de fazer cola caseira. Algo envolvendo farinha e água e
muita confusão na cozinha, de onde éramos expulsos
sob ameaças. Hoje não sei mais. A gente começava
a contar depois de ver um relâmpago e o número a que
[15] chegasse quando ouvia a trovoada, multiplicado por
outro número, dava a distância exata do relâmpago.
Não me lembro mais dos números. (...)
Lembro o orgulho com que consegui, pela primeira
vez, cuspir corretamente pelo espaço adequado entre
[20] os dentes de cima e a ponta da língua de modo que o
cuspe ganhasse distância e pudesse ser mirado. Com
prática, conseguia-se controlar a trajetória elíptica da
cusparada com uma mínima margem de erro. Era puro
instinto. Hoje o mesmo feito requereria complicados
[25] cálculos de balística, e eu provavelmente só acertaria a
frente da minha camisa. Outra habilidade perdida.
Na verdade, deve-se revisar aquela antiga frase. É
vivendo e .................... . Não falo daquelas coisas que
deixamos de fazer porque não temos mais as condições
[30] físicas e a coragem de antigamente, como subir em
bonde andando – mesmo porque não há mais bondes
andando. Falo da sabedoria desperdiçada, das artes
que nos abandonaram. Algumas até úteis. Quem nunca
desejou ainda ter o cuspe certeiro de garoto para
[35] acertar em algum alvo contemporâneo, bem no olho, e
depois sair correndo? Eu já.
Luís F. Veríssimo, Comédias para se ler na escola.
Considere as seguintes substituições propostas para diferentes trechos do texto:
I. “o número a que chegasse” (L. 14-15) = o número a que alcançasse.
II. “Lembro o orgulho” (L. 18) = Recordo-me do orgulho.
III. “coisas que deixamos de fazer” (L. 28-29) = coisas que nos descartamos.
IV. “não há mais bondes” (L. 31) = não existe mais bondes.
A correção gramatical está preservada apenas no que foi proposto em
I.
II.
III.
II e IV.
I, III e IV.