ESPM 2009/2

Uma Vela para Dario

Dalton Trevisan

 

  Dario vinha apressado, o guarda-chuva no braço esquerdo e, assim que dobrou a esquina, diminuiu o passo até parar, encostando-se à parede de uma casa. Foi escorregando por ela, sentou-se na calçada, ainda úmida de chuva, e descansou na pedra o cachimbo.

  Dois ou três passantes rodearam-no e indagaram se não se sentia bem. Dario abriu a boca, moveu os lábios, mas não se ouviu resposta. Um senhor gordo, de branco, sugeriu que devia sofrer de ataque.

  Ele reclinou-se mais um pouco, estendido agora na calçada, e o cachimbo tinha apagado. Um rapaz de bigode pediu ao grupo que se afastasse e o deixasse respirar. Abriulhe o paletó, o colarinho, a gravata e a cinta. Quando lhe retiraram os sapatos, Dario roncou feio e bolhas de espuma surgiram no canto da boca.

  Cada pessoa que chegava erguia-se na ponta dos pés, embora não o pudesse ver. Os moradores da rua conversavam de uma porta à outra, as crianças foram acordadas e vieram de pijama às janelas. O senhor gordo repetia que Dario sentara-se na calçada, soprando ainda a fumaça do cachimbo e encostando o guarda-chuva na parede. Mas não se via guarda-chuva ou cachimbo ao lado dele.

  Uma velhinha de cabeça grisalha gritou que ele estava morrendo. Um grupo transportou-o na direção do táxi estacionado na esquina. Haviam introduzido no carro a metade do corpo, quando o motorista protestou: se ele finasse na viagem? Concordaram em chamar a ambulância. Dario foi conduzido de volta e recostado à parede - não tinha os sapatos  nem o alfinete de pérola na gravata

  Alguém informou que na outra rua existia uma farmácia. Não carregaram Dario além da esquina; a farmácia era no fim do quarteirão e, além do mais, ele estava muito pesado. Foi largado ali na porta de uma peixaria. Imediatamente um enxame de moscas lhe cobriu o rosto, sem que fizesse o menor gesto para espantá-las.

  As mesas de um café próximo foram ocupadas pelas pessoas que tinham vindo apreciar o incidente e, agora, comendo e bebendo, gozavam as delícias da noite. Dario ficou torto como o deixaram, no degrau da peixaria, sem o relógio de pulso.

  Um terceiro sugeriu que lhe examinassem os documentos. Vários objetos foram retirados de seus bolsos e alinhados sobre a camisa branca. Ficaram sabendo do seu nome, idade, sinais de nascença, mas o endereço na carteira era de outra cidade.

  Registrou-se correria no público de mais de duzentos curiosos que, a essa hora, ocupavam toda a rua e as calçadas: era a polícia. O carro negro investiu contra a multidão e várias pessoas tropeçaram no corpo de Dario, que foi pisoteado dezessete vezes.

  O guarda aproximou-se do cadáver e não pôde identificálo - os bolsos vazios. Restava a aliança de ouro na mão esquerda, que ele próprio - quando vivo - não podia retirar do dedo senão umedecendo-o com sabonete. Ficou decidido que o caso era com o rabecão (*).

  A última boca repetiu — "Ele morreu, ele morreu", e então a gente começou a se dispersar. Dario havia levado duas horas para morrer e ninguém acreditara que estivesse no fim. Agora, os que podiam olhá-lo, viam que tinha todo o ar de um defunto.

  Um senhor piedoso despiu o paletó de Dario para lhe sustentar a cabeça. Cruzou as suas mãos no peito. Não pôde fechar os olhos nem a boca, onde as bolhas de espuma haviam desaparecido. Era apenas um homem morto e a multidão se espalhou rapidamente, as mesas do café voltaram a ficar vazias. Demoravam-se na janela alguns moradores que haviam trazido almofadas para descansar os cotovelos.

  Um menino de cor e descalço veio com uma vela, que acendeu ao lado do cadáver. Parecia morto há muitos anos, quase o retrato de um morto desbotado pela chuva.

  Fecharam-se uma a uma as janelas e, três horas depois, lá estava Dario à espera do rabecão. A cabeça agora na pedra, sem o paletó, e o dedo sem a aliança. A vela tinha queimado até a metade e apagou-se às primeiras gotas da chuva, que voltava a cair.

(Trevisan, Dalton, Cemitério de Elefantes, Civilização Brasileira, 3a ed., pp.32 a 34)

Ao longo da narrativa, há todo um processo de degradação humana cujo auge se dá:

a

no roubo paulatino dos objetos: guarda-chuva, cachimbo, alfinete de pérola, sapatos, relógio, aliança, e até o paletó.

b

nas alegações negligentes por parte das pessoas no socorro: morrer dentro do táxi, farmácia distante, corpo pesado.

c

quando Dario é largado na peixaria como um lixo, pois “um enxame de moscas lhe cobriu o rosto”.

d

com a crueldade com que as pessoas “tropeçaram no corpo de Dario, que foi pisoteado dezessete vezes.”

e

na perda da identidade, quando “O guarda aproximou-se do cadáver e não pôde identificá-lo – os bolsos vazios.”

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E
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