Um menino aprende a ler
Minha mãe sentava-se a coser e retinha-me de livro na mão, ao lado dela, ao pé da máquina de costura. O livro tinha numa página a figura de um bicho carcunda ao lado do qual, em letras graúdas, destacava-se esta palavra: ESTÔMAGO. Depois de soletrar "es-to-ma-go", pronunciei "estómago". Eu havia pronunciado bem as duas primeiras palavras que li, camelo e dromedário. Mas estômago, pronunciei estómago. Minha mãe, bonita como só pode ser mãe jovem para filho pequeno, o rosto alvíssimo, os cabelos enrolados no pescoço, parou a costura e me fitou de fazer mêdo: "Gilberto!" Estremeci. "Estómago? Leia de nôvo, soletre." Soletrei, repeti: "Estomágo." Foi o diabo.
Jamais tinha ouvido, ao que lembrasse então, a palavra estômago. A cozinheira, o estribeiro, os criados, Bernanda, diziam "estambo". "Estou com uma dor na bôca do estambo..." "Meu estambo está tinindo..." Meus pais teriam pronunciado direito na minha presença, mas eu não me lembrava. E criança, como o povo, sempre que pode repele o proparoxítono.
AMADO, G. História da minha infância. Rio de Janeiro: José Olympo, 1958
No trecho, em que o narrador relembra um episódio de sua infância, revela-se a possibilidade de a língua se realizar de formas diferentes. Com base no texto, a passagem em que se constata uma marca de variedade linguística pouco prestigiada é:
"O livro tinha numa página a figura de um bicho carcunda ao lado da qual, em letras graúdas, destacava-se esta palavra: ESTÔMAGO."
"'Gilberto!'. Estremeci. 'Estomágo? Leia de novo, soletre'. Soletrei, repeti: 'Estomágo'".
"Eu havia pronunciado bem as duas primeiras palavras que li, camelo e dromedário".
"Jamais tinha ouvido, ao que me lembrasse então, a palavra estômago".
"A cozinheira, o estribeiro, os criados, Bernarda, diziam 'estambo'".
A questão pede para identificar, no trecho fornecido, a passagem que exemplifica uma marca de variedade linguística considerada "pouco prestigiada". O texto narra uma memória de infância do narrador aprendendo a ler, focando na dificuldade com a palavra "estômago".
1. Leitura Atenta do Texto: O narrador descreve como sua mãe o ensinava a ler. Ele pronuncia corretamente "camelo" e "dromedário", mas erra "estômago", dizendo "estómago" (erro de acentuação). A mãe o corrige severamente.
2. Identificação do Contraste Linguístico: O ponto crucial do texto para a questão é a reflexão do narrador sobre o motivo de sua dificuldade. Ele afirma que nunca tinha ouvido a palavra "estômago" pronunciada da forma padrão (proparoxítona). Em contraste, ele menciona como os empregados da casa (cozinheira, estribeiro, criados) pronunciavam a palavra: "estambo".
3. Análise do Conceito de Prestígio Linguístico: Variedades linguísticas podem ter diferentes níveis de prestígio social. A "norma culta" ou padrão, geralmente associada a grupos sociais com maior escolaridade e poder econômico, é considerada de maior prestígio. Formas linguísticas usadas por outros grupos, ou em contextos informais, podem ser vistas como de "menor prestígio", embora sejam igualmente válidas do ponto de vista linguístico. O texto associa a forma "estambo" aos "criados" e ao "povo", contrastando-a implicitamente com a forma padrão ("estômago") exigida pela mãe, que representa a norma de maior prestígio.
4. Avaliação das Alternativas:
Conclusão: A alternativa E é a única que apresenta uma forma linguística ("estambo") explicitamente usada por um grupo social específico (os criados) e que difere da norma padrão ("estômago"), caracterizando-se como a variedade linguística pouco prestigiada solicitada.
A língua não é um bloco homogêneo; ela varia de acordo com diversos fatores. Chamamos isso de variação linguística.
O conceito de prestígio linguístico está ligado à variação social. A norma padrão (ou norma culta) é a variedade geralmente ensinada nas escolas e usada em contextos formais, associada a maior prestígio social. Outras variedades, como a linguagem popular ou regionalismos, embora perfeitamente funcionais e válidas do ponto de vista linguístico, podem ser consideradas de "menor prestígio" e, por vezes, alvo de preconceito linguístico. No texto, "estômago" representa a norma padrão, enquanto "estambo" representa uma variedade popular, socialmente marcada como de menor prestígio.