Um homem doente faz a oração da manhã
Pelo sinal da Santa Cruz,
chegue até Vós meu ventre dilatado
e Vos comova, Senhor, meu mal sem cura.
Inauguro o dia, eu que ao meu crédito explico
que passei em claro a treva da noite.
Escutei – e é quando às vezes descanso –
vozes de há mais de trinta anos.
Vi no meio da noite nesgas claríssimas de sol.
Minha mãe falou,
enxotei gatos lambendo
O prato da minha infância.
Livrai-me de lançar contra Vós
a tristeza do meu corpo
e seu apodrecimento cuidadoso.
Mas desabafo dizendo:
que irado amor Vós tendes.
Tem piedade de mim,
tem piedade de mim
pelo sinal da Vossa Cruz
que faço na testa, na boca, no coração.
Da ponta dos pés à cabeça,
de palma a palma da mão.
PRADO, Adélia. Um homem doente faz a oração da manhã. Bagagem. In: Poesia Reunida. Rio de Janeiro: Siciliano, 1991. p. 51.
Nos versos de Adélia Prado, o eu poético revela-se
temeroso de um futuro incerto, injusto e distante da presença divina.
temente a Deus e confiante, mesmo diante de todos os males que o acometem.
angustiado devido a sua moléstia, pedindo incessantemente clemência ao Senhor.
comovido perante o sofrimento e a doença daqueles que se distanciam do ser divino.
pecador e incapaz de reverter o caminho construído por ele mesmo.