Um companheiro de casa que eu tive em estudante, joia entre as joias, meu inseparável amigo de recreios e trabalhos, cinco anos, comete um dia a refinada tolice de morrer. Horas e horas o meu desespero não conheceu calmante ou refrigério. Doze dias, febril, velara eu ao derredor da sua cabeceira, e depois dele morto e glácido1 no leito, fui eu ainda quem lhe compôs a última toilette2. Alguém que vinha às vezes, acordando na minha fraqueza orgânica, caquetizada por três dias da mais completa abstinência, lembrou-se, na derradeira noite em que velamos, de me trazer do Baltresqui, um pacotezinho de sanduíches. Oh torpeza da carne! Tanto bastou para que eu, mesmo sem deixar de chorar, pensasse menos no morto, e cada vez mais nos sanduíches. A proximidade do repasto3 açulava-me a fome, que a presença do amigo me obrigava a deixar sem vitualhas4. Venceu por fim a besta, era fatal: e por causa duma pouca de vitela com mostarda, surpreendi-me eu a ter ódio aos despojos5 do mais fiel companheiro da minha mocidade! E mais este era um amigo: que será então com os que a gente nem conhece!...
(Fialho de Almeida, “O enterro do Rei D. Luís”. In: Massaud Moisés. Presença da literatura portuguesa, 1974.)
Na narrativa, uma forma encontrada pelo narrador para tentar captar a realidade materializa-se
na indiferença com que ele age em relação ao amigo morto, estando mais preocupado em se alimentar com sanduíches do Baltresqui.
na naturalidade com que encara a morte do melhor amigo, mesmo depois de terem estado juntos por cinco anos.
no sofrimento exagerado que ele vivencia com a morte do amigo, tendo ficado sem se alimentar até que o velório terminasse.
no desprezo que nutria por todos os que estavam no velório, incapazes de entender o seu sofrimento pela perda do melhor amigo.
na contradição vivida por ele quando, em meio ao sofrimento pela morte do amigo, é tomado pela necessidade de alimentar-se.