Texto
Vidas Secas
E a viagem prosseguiu, mais lenta, mais arra-
stada, num silencio grande. Ausente do companheiro, a
cachorra Baleia tomou a frente do grupo. Arqueada,
as costelas à mostra, corria ofegando, a língua fora
[5] da boca. E de quando em quando se detinha, espe-
rando as pessoas, que se retardavam.
Ainda na véspera eram seis viventes, contando
com o papagaio. Coitado, morrera na areia do rio,
onde haviam descansado, à beira de uma poça: a
[10] fome apertara demais os retirantes e por ali não exis-
tia sinal de comida.
As manchas dos juazeiros tornaram a aparecer,
Fabiano aligeirou o passo, esqueceu a fome, a can-
seira e os ferimentos. As alpercatas dele estavam
[15] gastas nos saltos, e a embira tinha-lhe aberto entre
os dedos rachaduras muito dolorosas. Os calcanha-
res, duros como cascos, gretavam-se e sangravam.
Num cotovelo do caminho avistou um canto de cerca,
encheu-o a esperança de achar comida, sentiu dese-
[20] jo de cantar. A voz saiu-lhe rouca, medonha. Calou-se
para não estragar força.
Deixaram a margem do rio, acompanharam a
cerca, subiram uma ladeira, chegaram aos juazeiros.
Fazia tempo que não viam sombra. Sinhá Vitória aco-
[25] modou os filhos, que arriaram como trouxas, cobriu-
os com molambos. O menino mais velho, passada
a vertigem que o derrubara, encolhido sobre folhas
secas, a cabeça encostada a uma raiz, adormecia,
acordava. E quando abria os olhos, distinguia vaga-
[30] mente um monte próximo, algumas pedras, um carro
de bois. A cachorra Baleia foi enroscar-se junto dele.
Estavam no pátio de uma fazenda sem vida. O
curral deserto, o chiqueiro das cabras arruinado e
também deserto, a casa do vaqueiro fechada, tudo
[35] anunciava abandono. Certamente o gado se finara
e os moradores tinham fugido. Fabiano procurou em
vão perceber um toque de chocalho. Avizinhou-se da
casa, bateu, tentou forçar a porta. Encontrando re-
sistência, penetrou num cercadinho cheio de plantas
[40] mortas, rodeou a tapera, alcançou o terreiro do fun-
do, viu um barreiro vazio, um bosque de catingueiras
murchas, um pé de turco e o prolongamento da cerca
do curral.
RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1969. Adaptado.
O tema desenvolvido por Graciliano Ramos no texto é
a falta de emprego
os impactos da seca
a morte dos animais
a geografia da caatinga
os conflitos familiares