TEXTO VI
LEITE DERRAMADO
“Um homem muito velho está num leito de hospital. E desfia a quem quiser ouvir suas memórias. Uma saga familiar caracterizada pela decadência social e econômica, tendo como pano de fundo a história do Brasil dos últimos dois séculos.”
Não sei por que você não me alivia a dor. Todo
dia a senhora levanta a persiana com bruteza e joga sol
no meu rosto. Não sei que graça pode achar dos meus
esgares, é uma pontada cada vez que respiro. Às vezes
[5] aspiro fundo e encho os pulmões de um ar insuportável,
para ter alguns segundos de conforto, expelindo a dor.
Mas bem antes da doença e da velhice, talvez minha
vida já fosse um pouco assim, uma dorzinha chata a me
espetar o tempo todo, e de repente uma lambada atroz.
Quando perdi minha mulher, foi atroz. E qualquer coisa
[10] que eu recorde agora, vai doer, a memória é uma vasta
ferida. Mas nem assim você me dá os remédios, você é
meio desumana. Acho que nem é da enfermagem,
nunca vi essa cara sua por aqui. Claro, você é a minha
filha que estava na contraluz, me dê um beijo. Eu ia
[15] mesmo lhe telefonar para me fazer companhia, me ler
jornais, romances russos. Fica essa televisão ligada o
dia inteiro, as pessoas aqui não são sociáveis. Não
estou me queixando de nada, seria uma ingratidão com
[20] você e com o seu filho. Mas se o garotão está tão rico,
não sei por que diabos não me interna em uma casa de
saúde tradicional, de religiosas. Eu próprio poderia
arcar com viagem e tratamento no estrangeiro, se o seu
marido não me tivesse arruinado.
(BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 10 – 11.)
O discurso do personagem só NÃO nos permite afirmar que ele:
está resignado com o tratamento que recebe de sua filha e de seu neto.
apresenta-se pouco lúcido, tomado por incertezas e angústias.
lamenta-se não só das perdas emocionais como das materiais e sociais.
é um homem orgulhoso e culto, ressentido por não ser bem servido pelos outros.