Texto
Tatuagens
[1] Cheguei hoje à triste conclusão de que sou o último exemplar da espécie "Homo sapiens" que não tem uma tatuagem
[2] para mostrar. Amigos, amigas, sobretudo amigas, todos eles ostentam iconografia diversa em diversas partes do corpo.
[3] Preferências pelo mundo animal, bélico e satânico.
[4] Eu, pelo contrário, sou uma tela em branco, coberto apenas por penugem hominídea, a fatal celulite e algumas
[5] cicatrizes que trouxe do Vietnã. Como explicar essa epidemia de tatuagens que transforma o meu mundo num retorno à pré-
[6] história, com os meus amigos feitos pinturas rupestres e eu, um dinossauro em extinção?
[7] Uma possível explicação pode ser buscada em Norbert Elias (1897 - 1990), o grande historiador da França pré-
[8] revolucionária, que nas obras sobre a "sociedade da corte" disserta com talento inultrapassável sobre a forma como a nobreza
[9] sempre se procurou distinguir da populaça circundante.
[10] Conta Elias, sobretudo em "O Processo Civilizacional", que as elites procuravam essa distinção pela busca de novos
[11] e refinados símbolos (nos adereços, no vestuário, nos comportamentos). Só depois a plebe corria atrás, procurando imitar e,
[12] pela imitação, "nobilitando-se". A ascensão social fazia-se por imitação social, ou seja, por imitação "superior".
[13] As tatuagens representam uma pequena revolução civilizacional. Pela primeira vez em toda a história social do
[14] Ocidente, a classe média procura distinguir-se por imitação "inferior": se os nossos antepassados olhavam para cima, os
[15] nossos contemporâneos olham para baixo. Para as marcas tangíveis, carnais, inapagáveis de roqueiros ou marginais, como
[16] se essa descida fosse uma forma paradoxal de ascensão.
[17] O problema desses movimentos miméticos é que eles acabam sempre por atingir estágios de estagnação, nos quais
[18] é necessário encontrar novas marcas distintivas - não é por acaso, escreve Elias, que Paris se foi refinando continuamente:
[19] uma vez imitada pela plebe, a nobreza partia em busca de novos códigos exclusivos que por sua vez acabariam por ser
[20] imitados, e abandonados, e trocados por outros. "Ad infinitum".
[21] Hoje, a imitação "inferior" bateu contra o mesmo tipo de parede - e a tatuagem, que era a exceção na paisagem,
[22] passou a ser regra. Difícil não é ter ou ver uma tatuagem. Difícil é não ter ou não ver.
[23] O que significa que, mais cedo ou mais tarde, não será de excluir que os meus amigos comecem a aparecer com
[24] ossos no nariz, em imitação de uma qualquer tribo primitiva e, de preferência, assaz remota e assaz exclusiva.
[25] Uma civilização que já olhou para cima e para baixo para se "nobilitar" socialmente, talvez encontre novos caminhos
[26] de distinção olhando para longe.
João Pereira Coutinho, Folha.com, 20/09/2010. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/joaopereiracoutinho/801207-tatuagens.shtml. Texto adaptado para essa prova.
Considere as afirmações:
I. Caso se substituísse a expressão ―num retorno‖ (linha 5) por ―numa volta‖, haveria condições para a manutenção do sinal indicativo de crase.
II. A conjunção integrante ―que‖ (linha 10) introduz oração que complementa o verbo ―contar‖ (linha 10).
III. ―Nobilitar‖ (linha 25) é um neologismo que amplia o sentido dos verbos notar e habilitar.
IV. ―Hoje‖ (linha 21) é um advérbio que remete ao momento único da leitura do texto.
É correto o que se afirma em:
I apenas
II e III apenas
I e II apenas
I, II e III apenas
Todas estão corretas.