TEXTO
Selminha — Você entende papai?
Dália — Papai mudou.
Selminha — É outra pessoa!
Dália — Com a morte de mamãe, desque mamãe
morreu, mudou tanto!
Selminha (com certo desespero) — Mudou com o meu casamento. Foi o meu casamento. Foi, sim, Dália. Com o meu casamento.
Dália — Sei lá.
Selminha — Te digo mais. Às vezes, eu penso. Penso que papai sentiu mais o meu casamento que a morte de mamãe. Ele não vem aqui, nem telefona. Sou eu que telefono. Ou então. Evita Arandir
Dália — Não gosta de Arandir.
Selminha (febril) — Como são as coisas! Veja você. Arandir me disse, hoje: “Vou aproveitar o negócio da Caixa Econômica e passo no teu pai. Ele conhece lá um cara. Vamos na Caixa e eu convido teu pai pra jantar.” Não adiantou. Adiantou? Pois é. Papai não dá pelota para Arandir. Nem bola!
Dália — Papai me assusta.
Selminha — Não gosta de Arandir — por quê?
Dália (taxativa) — Ciúmes.
Selminha (virando-se atônita) — De mim?
Dália — De ti. (Selminha repete, lentamente, com espanto e uma nascente angústia.)
Selminha (falando para si mesma) — Ciúmes de mim?
Dália — Ou você é cega?Selminha (com frívolo arrebatamento) — Que bobagem, ciúmes de mim! (muda de tom e novamente angustiada) Você acha?
Dália — Acho! Acho! (Selminha, de frente para a plateia, costas para a irmã e uma inflexão de sonho.) Selminha (meio alada) — Ciúmes de mim. (Dália vem por trás e fala por cima do ombro da irmã, que permanece de costas para ela.)
Dália (repetindo) — De ti. No teu casamento eu pensei tanto na morte de mamãe. Mas no teu casamento quem morria era papai. Na igreja, de braço contigo, papai ia morrendo. Tive a sensação, te juro! de que... Selminha (num apelo, quase sem voz) — Não fala assim!
Dália (com mais veemência) — E outra vez. Aquele dia!
Selminha — Quando?
Dália — No dia em que vim para cá. Vocês tinham chegado da lua de mel. Eu me lembro. Papai me trouxe e até você estava com aquele quimono, aquele, como é?
Selminha — O azul?
Dália — Não. Aquele que a vovó te deu. Papai me trouxe. Não queria vir. Insisti. Veio. E chegou aqui,
você sentou-se no colo de Arandir. Se você visse a cara de papai! a cara!
Selminha — Não me lembro.
Dália — Cara de ódio! Saiu imediatamente e...
Selminha — Você está imaginando! Isso é imaginação! (com súbita ternura) Mas eu ainda tenho você e
Dália — Selminha, amanhã vou-me embora!
Selminha — Você?
Dália — Não fico mais aqui.
(RODRIGUES, Nelson. O beijo no asfalto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995, p. 30-32. Adaptado.)
Em alguns momentos do Texto 8, como em “tive a sensação, te juro! de que...” e em “saiu imediatamente e...” , há cortes sintáticos nas sentenças.
Sobre esses cortes, é correto afirmar que eles:
suspendem temporariamente a progressão do texto para criar uma atmosfera de suspense e para aproximar a narrativa da língua falada, já que se trata de uma peça de teatro.
têm o propósito de tornar as informações implícitas, redundantes, imprecisas e fragmentadas como forma de reproduzir a dinâmica da vida em sociedade.
prejudicam a textualidade da peça e conferem-lhe semelhança com produções caóticas que se utilizam de palavras, mas nada dizem.
impedem o leitor de participar da construção de sentidos do texto, já que o privam de conhecer o conteúdo da fala da personagem.