TEXTO
Pois fora certamente num acesso de empirismo absoluto e radical que, no meio do caminho entre o estacionamento e a escola, ele parara num trailer e comprara um ovo.
Algo, no entanto, se podia dizer tanto a seu favor como contra: ele não parara ali para comprar o ovo e sim para beber uma coca-cola. E foi só quando viu o homem do trailer preparar para alguém um sanduíche que levava, entre outras coisas, um ovo frito, que sentiu o impulso de comprar um ovo fresco. Embora sua cabeça não estivesse batendo bem (ou talvez por isso mesmo), ele intuía que talvez se encontrasse aí o elo perdido, a chave que lhe permitiria penetrar as trevas, à procura do qual se atormentara enquanto dirigia como um zumbi de casa até à escola. E não era um ovo, literalmente, um embrião? E não era disso que precisava: um embrião que fizesse germinar a aula e o curso?
A negociação, porém, fora algo penosa. O homem do trailer lhe dissera que os ovos não estavam à venda separadamente dos sanduíches. E ele, por sua vez, fizera ver ao sujeito que estava disposto a pagar pelo ovo o preço de um sanduíche. Ao que o homem retrucara que, vendendo um ovo isoladamente, acabaria desfalcando outro sanduíche, prejudicando outro freguês. Ao que ele contra-argumentara que não tinha problema, compraria um sanduíche, só que ao invés de ter um ovo dentro, queria o ovo fora, o que acabou prevalecendo, sob os olhares desconfiados de outros fregueses, a maioria de estudantes, gente convencional e ciosa de seus hamburguers e similares. Além disso, a vizinhança da Pinel deixava as pessoas sempre de sobreaviso, ao menor sinal de um comportamento mais inusitado.
Com a sacola no ombro, ele foi se afastando como o sanduíche numa das mãos e o ovo na outra, e esperou até encontrar-se a uma distância razoável do trailer para oferecer, despistadamente, o seu cheeseburger a um dos inúmeros gatos esquálidos que frequentavam o campus. E, mesmo na situação aflitiva em que se encontrava, não pôde deixar de pensar que o acaso, do qual acabara de ser instrumento, governava o destino dos seres, como aquele gato, que, de repente, via cair diante de sua boca uma refeição requintada. Tal pensamento fez-lhe bem, mas logo o peso da realidade recaiu sobre ele, a realidade da aula que tinha de dar, regida pelas mesmas leis: as do acaso.
[...]
(SANT’ANNA, Sérgio. Breve história do espírito. São Paulo, Companhia das Letras, 1991. p. 63-64. Adaptada.)
Considere o Texto, fragmento do conto “A Aula”, de Sérgio Sant’Anna, atentando-se para o dilema do personagem em questão, o professor que se dirigia ao campus de uma universidade para ministrar sua aula. Esse dilema ilustra a fragilidade e a insegurança do ser humano diante dos seus grandes desafios.
Com base nessas afirmações, marque a alternativa correta:
Trata-se de um dilema simples, uma vez que o professor apenas tem dificuldade para realizar uma operação comercial, pois tem de adquirir um sanduíche completo, quando queria tão somente um ovo.
Trata-se de um dilema preocupante, pois o personagem tenta se fazer entender, mas o atendente do trailer se mostra muito mais interessado em servir aos estudantes que ali se encontravam.
Todo o dilema do professor está concentrado no ovo que ele tenta comprar a todo custo, a partir do qual sua aula já estava planejada, abordando teorias da fundação do mundo.
O ovo lhe chamou a atenção como símbolo que remete ao princípio, à mutabilidade das coisas, o que o fez acreditar que ele pudesse sugerir-lhe algum tema para a aula que teria de ministrar e para a qual não se sentia preparado.