Texto para a questão
A imitação da rosa
Antes que Armando voltasse do trabalho a casa deveria estar arrumada e ela própria já no vestido marrom para que pudesse atender o marido enquanto ele se vestia, e então sairiam com calma, de braço dado como antigamente. Há quanto tempo não faziam isso?
Mas agora que ela estava de novo "bem", tomariam o ônibus, ela olhando como uma esposa pela janela, o braço no dele, e depois jantariam com Carlota e João, recostados na cadeira com intimidade. Há quanto tempo não via Armando enfim se recostar com intimidade e conversar com um homem? A paz de um homem era, esquecido de sua mulher, conversar com outro homem sobre o que saía nos jornais. Enquanto isso ela falaria com Carlota sobre coisas de mulheres, submissa à bondade autoritária e prática de Carlota, recebendo enfim de novo a desatenção e o vago desprezo da amiga, a sua rudeza natural, e não mais aquele carinho perplexo e cheio de curiosidade — e vendo enfim Armando esquecido da própria mulher. E ela mesma, enfim, voltando à insignificância com reconhecimento. Como um gato que passou a noite fora e, como se nada tivesse acontecido, encontrasse sem uma palavra um pires de leite esperando. As pessoas felizmente ajudavam a fazê‐la sentir que agora estava "bem". Sem a fitarem, ajudavam-na ativamente a esquecer, fingindo elas próprias o esquecimento como se tivessem lido a mesma bula do mesmo vidro de remédio. Ou tinham esquecido realmente, quem sabe. Há quanto tempo não via Armando enfim se recostar com abandono, esquecido dela? E ela mesma?
LISPECTOR, Clarice. Laços de família: contos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990, p. 47.
Na obra de Clarice Lispector, é comum a explicitação do cotidiano opressor da sociedade patriarcal.
No fragmento, essa representação pode ser ilustrada por meio
da referência a clichês que denunciam um estereótipo de gêneros, enquanto a inadaptação é vinculada a um comportamento selvagem.
da exploração de paradoxos, como “olhando como uma esposa”, que evidenciam a falta de sentido das atribuições dadas às mulheres na época.
da insinuação de que a sociedade prefere ignorar indivíduos que não estão “bem”, isto é, não conseguem se adaptar às regras sociais.
da denúncia de que mulheres que tentavam ficar “bem”, isto é, que tomavam suas próprias decisões, incomodavam seus maridos, tirando‐lhes a paz.
do emprego de termos como “felizmente” que revelam a aprovação do marido para a mudança de comportamento da esposa, em oposição à desaprovação das outras pessoas.