TEXTO:
O vergalho
Tais eram as reflexões que eu vinha fazendo, por
aquele Valongo* fora, logo depois de ver e ajustar a casa.
Interrompeu-mas um ajuntamento; era um preto que
vergalhava outro na praça. O outro não se atrevia a fugir;
5 gemia somente estas únicas palavras: — “Não, perdão,
meu senhor; meu senhor, perdão!” Mas o primeiro não
fazia caso, e, a cada súplica, respondia com uma
vergalhada nova.
— Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdão,
10 bêbado!
— Meu senhor! gemia o outro.
— Cala a boca, besta! replicava o vergalho.
Parei, olhei... Justos céus! Quem havia de ser o
do vergalho? Nada menos que o meu moleque
15 Prudêncio, — o que meu pai libertara alguns anos antes.
Cheguei-me; ele deteve-se logo e pediu-me a bênção;
perguntei-lhe se aquele preto era escravo dele.
— É, sim, nhonhô.
— Fez-te alguma cousa?
20 — É um vadio e um bêbado muito grande. Ainda
hoje deixei ele na quitanda, enquanto eu ia lá embaixo
na cidade, e ele deixou a quitanda para ir na venda beber.
— Está bom, perdoa-lhe, disse eu.
— Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não pede.
25 Entra para casa, bêbado!
Saí do grupo, que me olhava espantado e
cochichava as suas conjecturas. Segui caminho, a
desfiar uma infinidade de reflexões, que sinto haver
inteiramente perdido; aliás, seria matéria para um bom
30 capítulo, e talvez alegre. Eu gosto dos capítulos alegres;
é o meu fraco. Exteriormente, era torvo o episódio do
Valongo; mas só exteriormente. Logo que meti mais
dentro a faca do raciocínio achei-lhe um miolo gaiato,
fino, e até profundo. Era um modo que o Prudêncio tinha
35 de se desfazer das pancadas recebidas, — transmitindo-as
a outro. Eu, em criança, montava-o, punha-lhe um freio
na boca, e desancava-o sem compaixão; ele gemia e
sofria. Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo,
dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir,
40 desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se
desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com
alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as
sutilezas do maroto!
MACHADO DE ASSIS. Capítulo LXVIII. O vergalho. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d.]. p. 78. *Valongo - no Brasil escravagista, local utilizado para venda de escravos
Quanto aos aspectos estilísticos e retóricos presentes no texto, é correto o que se afirma em
A elipse que se evidencia na frase “era um preto que vergalhava outro na praça.” (l. 3-4) permite inferir o preconceito racial no comportamento da personagem Prudêncio.
O vocativo presente em “Toma, diabo!” (l. 9) denuncia, por meio da metáfora, a repugnância de Prudêncio diante de uma ideologia religiosa diversa da por ele praticada.
O uso da interrogação em “Quem havia de ser o do vergalho?” (l. 13-14) intensifica a indignação do sujeito narrador por não reconhecer o indivíduo que maltratava o outro.
A frase “Eu gosto dos capítulos alegres; é o meu fraco.” (l. 30-31) caracteriza a metalinguagem do texto, na medida em que o sujeito narrador explica algo sobre si mesmo em sua própria narrativa.
A expressão “faca do raciocínio” (l. 33) consiste em uma metáfora que traduz o ato agressivo do sujeito narrador em relação ao seu antigo escravo.