TEXTO
Nesta passagem do romance Vidas secas, o personagem Fabiano, retirante do sertão nordestino, prepara-se para voltar para casa após fazer poucas compras no armazém de seu Inácio. Fabiano, homem sem estudo, admira quem sabe ler e falar bem, como seu Tomás da bolandeira1 .
Nesse ponto um soldado amarelo aproximou-se e bateu familiarmente no ombro de Fabiano:
− Como é, camarada? Vamos jogar um trinta e um2 lá dentro?
Fabiano atentou na farda com respeito e gaguejou, procurando as palavras de seu Tomás da
bolandeira:
[5] − Isto é. Vamos e não vamos. Quer dizer. Enfim, contanto, etc. É conforme.
Levantou-se e caminhou atrás do amarelo, que era autoridade e mandava. Fabiano sempre havia
obedecido. Tinha muque e substância, mas pensava pouco, desejava pouco e obedecia.
Atravessaram a bodega3, o corredor, desembocaram numa sala onde vários tipos jogavam cartas
em cima de uma esteira.
[10] − Desafasta, ordenou o polícia. Aqui tem gente.
Os jogadores apertaram-se, os dois homens sentaram-se, o soldado amarelo pegou o baralho. Mas
com tanta infelicidade que em pouco tempo se enrascou. Fabiano encalacrou-se também. (...)
− Espera aí, paisano4, gritou o amarelo.
Fabiano, as orelhas ardendo, não se virou. Foi pedir a seu Inácio os troços que ele havia guardado,
[15] vestiu seu gibão5, passou as correias dos alforjes6 no ombro e ganhou a rua.
(...)
− Desafasta, bradou o polícia.
E insultou Fabiano, porque ele tinha deixado a bodega sem se despedir.
(...) Fabiano impacientou-se e xingou a mãe dele. Aí o amarelo apitou, e em poucos minutos o
destacamento da cidade rodeava o jatobá.
[20] − Toca pra frente, berrou o cabo.
Fabiano marchou desorientado, entrou na cadeia, ouviu sem compreender uma acusação medonha
e não se defendeu.
(...) Havia engano, provavelmente o amarelo o confundira com outro. Não era senão isso.
(...)
E por mais que forcejasse7, não se convencia de que o soldado amarelo fosse governo. Governo,
[25] coisa distante e perfeita, não podia errar. O soldado amarelo estava ali perto, além da grade, era
fraco, era fraco e ruim, jogava na esteira com os matutos8 e provocava-os depois. O governo não
devia consentir tão grande safadeza.
Havia muitas coisas. Ele não podia explicá-las, mas havia. Fossem perguntar a seu Tomás da
bolandeira, que lia livros e sabia onde tinha as ventas9.
GRACILIANO RAMOS Vidas secas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938.
1 bolandeira − máquina usada na agricultura
2 trinta e um − tipo de jogo de apostas
3 bodega − pequeno armazém
4 paisano − quem não é militar
5 gibão − espécie de casaco
6 alforje − tipo de saco
7 forcejar − esforçar-se
8 matuto − indivíduo com pouca instrução
9 ventas − nariz
Quer dizer. Enfim, contanto, etc. É conforme. (l. 5)
No trecho acima, Fabiano tenta falar como seu Tomás da bolandeira, mas sua fala não é compreensível.
A fala torna-se incompreensível porque as palavras que a compõem são usualmente empregadas para:
expressar ação incompleta
indicar sentido contraditório
estabelecer relação entre ideias
apresentar dúvida entre interlocutores