TEXTO
Não sei por que você não me alivia a dor. Todo
dia a senhora levanta a persiana com bruteza e joga
sol no meu rosto. Não sei que graça pode achar dos
meus esgares, é uma pontada cada vez que respiro.
[5] Às vezes aspiro fundo e encho os pulmões de um ar
insuportável, para ter alguns segundos de conforto,
expelindo a dor. Mas bem antes da doença e da
velhice, talvez minha vida já fosse um pouco assim,
uma dorzinha chata a me espetar o tempo todo, e de
[10] repente uma lambada atroz. Quando perdi minha
mulher, foi atroz. E qualquer coisa que eu recorde
agora, vai doer, a memória é uma vasta ferida. Mas
nem assim você me dá os remédios, você é meio
desumana. Acho que nem é da enfermagem, nunca vi
[15] essa sua cara por aqui. Claro, você é a minha filha
que estava na contraluz, me dê um beijo. Eu ia
mesmo lhe telefonar para me fazer companhia, me ler
jornais, romances russos. Fica essa televisão ligada o
dia inteiro, as pessoas aqui não são sociáveis.
BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.10. Fragmento.
A mudança de humor apresentada pelo personagem ao longo do texto é confirmada pela seguinte variação linguística:
Do mais regional ao mais universal: "de repente uma lambada atroz" / "você é a minha filha que estava na contraluz".
Do mais formal ao mais informal: "a senhora levanta a persiana"/ "nunca vi essa sua cara por aqui".
Do mais coloquial ao menos coloquial: "Não sei que graça pode achar dos meus esgares" / "me dê um beijo".
Do mais atual ao mais anacrônico: "meus esgares" / "Quando perdi minha mulher".
Do mais específico ao menos específico: "expelindo a dor" / "E qualquer coisa".