TEXTO:
— Mas que Humanitas é esse?
— Humanitas é o princípio. Há nas cousas todas
certa substância recôndita e idêntica, um princípio único,
universal, eterno, comum, indivisível e indestrutível [...].
[5] Pois essa substância ou verdade, esse princípio
indestrutível é que é Humanitas. Assim lhe chamo, porque
resume o universo, e o universo é o homem. Vais
entendendo?
— Pouco; mas, ainda assim, como é que a morte
[10] de sua avó...
Não há morte. O encontro de duas expansões, ou
a expansão de duas formas, pode determinar a supressão
de uma delas; mas, rigorosamente, não há morte, há
vida, porque a supressão de uma é a condição da
[15] sobrevivência da outra, e a destruição não atinge o
princípio universal e comum. Daí o caráter conservador
e benéfico da morte. Supõe tu um campo de batatas e
duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para
alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para
[20] transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas
em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em
paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se
suficientemente e morrem de inanição. A paz, nesse
caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma
[25] das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí
a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas
públicas e todos os demais efeitos das ações bélicas.
Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não
chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem
[30] só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso,
e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza
uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio
ou compaixão; ao vencedor, as batatas.
— Mas a opinião do exterminado?
[35] — Não há exterminado. Desaparece o fenômeno;
a substância é a mesma. Nunca viste ferver água? Hás
de lembrar-te que as bolhas fazem-se e desfazem-se de
contínuo, e tudo fica na mesma água. Os indivíduos são
essas bolhas transitórias.
[40] — Bem; a opinião da bolha...
— Bolha não tem opinião.
MACHADO DE ASSIS. Quincas Borba. In:______. Obra completa. Rio de Janeiro: Companhia José Aguilar, 1971. p. 648-649.
No trecho apresentado, há um diálogo entre Rubião e Quincas Borba, sobre a filosofia denominada “Humanitas” ou “Humanitismo”. Sobre essa filosofia, é correto afirmar:
I. Ela constitui uma crítica irônica ou uma sátira do autor dirigida ao cientificismo da época, representado pela teoria da seleção natural de Charles Darwin, que postulava, como uma lei natural, a sobrevivência do mais forte ou do mais esperto.
II. Seus princípios e conceitos desconstroem a visão negativa sobre as guerras, pois a eliminação dos mais fracos, mais do que a paz, seria benéfica ao aperfeiçoamento humanidade, que, gradualmente, seria constituída apenas dos seres mais aptos ou mais fortes.
III. O “caráter conservador e benéfico da morte.” (l. 16-17) constitui uma referência à possibilidade de superação das disputas, a partir de um aperfeiçoamento dos mecanismos de colaboração que constituem o princípio “indestrutível” (l. 6), “universal e comum” (l. 16).
IV. A exclamação “ao vencedor, as batatas!” (l. 33), expressa a alegria dos vencedores não apenas pelas recompensas, mas pela vitória do bem contra mal, da justiça contra a injustiça, com o triunfo de sentimentos de compreensão e solidariedade em relação aos vencidos.
V. A consideração sobre a “opinião do exterminado” (l. 34) ou a “opinião da bolha” (l. 40) evidencia outra face dessa filosofia, seu caráter antiético e repressor, pois o extermínio dos mais fracos não os atingiria apenas fisicamente, mas se assentaria também no cerceamento de seus direitos de expressão.
A alternativa em que todas as afirmativas indicadas estão corretas é a
I e III.
II e IV.
III e V.
I, II e V.
III, IV e V.
Neste excerto do romance Quincas Borba, de Machado de Assis, o personagem Quincas Borba expõe a Rubião sua concepção de “Humanitas” ou “Humanitismo”. Tal filosofia se baseia numa paródia irônica — ou sátira — do cientificismo da época e faz referência, de modo caricatural, às ideias da seleção natural (sobretudo no sentido de sobrevivência dos mais fortes). Assim, guerra e morte funcionam como instrumentos que asseguram a “conservação” dos mais aptos, pois, na lógica do Humanitismo, “desaparece o fenômeno; a substância é a mesma”.
Observemos as afirmações:
Diante disso, apenas as afirmativas I, II e V estão corretas. A resposta, portanto, é a alternativa (D).
Humanitismo (Machadiano): Trata-se da doutrina fictícia elaborada pelo personagem Quincas Borba, presente em obras de Machado de Assis. É uma sátira às teorias positivistas e ao darwinismo social da época, que defendiam a seleção natural em sociedade. A filosofia de Quincas Borba coloca a guerra como fator de conservação, pois o mais apto sobrevive com os recursos disponíveis.
Seleção Natural: Idea central de Charles Darwin, segundo a qual, no meio natural, sobrevivem aqueles indivíduos que conseguem se adaptar melhor ao ambiente — a “sobrevivência dos mais aptos”. O Humanitismo parodia e exagera esse princípio, transferindo-o para as relações humanas.