TEXTO II
FAVELÁRIO NACIONAL
Carlos Drummond de Andrade
Quem sou eu para te cantar, favela,
Que cantas em mim e para ninguém
a noite inteira de sexta-feira
e a noite inteira de sábado
[5] E nos desconheces, como igualmente não te
conhecemos?
Sei apenas do teu mau cheiro:
Baixou em mim na viração,
direto, rápido, telegrama nasal
[10] anunciando morte... melhor, tua vida.
...
Aqui só vive gente, bicho nenhum
tem essa coragem.
...
[15] Tenho medo. Medo de ti, sem te conhecer,
Medo só de te sentir, encravada
Favela, erisipela, mal-do-monte
Na coxa flava do Rio de Janeiro.
[20] Medo: não de tua lâmina nem de teu revólver
nem de tua manha nem de teu olhar.
Medo de que sintas como sou culpado
e culpados somos de pouca ou nenhuma irmandade.
Custa ser irmão,
[25] custa abandonar nossos privilégios
e traçar a planta
da justa igualdade.
Somos desiguais
e queremos ser
[30] sempre desiguais.
E queremos ser
bonzinhos benévolos
comedidamente
sociologicamente
[35]mui bem comportados.
Mas, favela, ciao,
que este nosso papo
está ficando tão desagradável.
vês que perdi o tom e a empáfia do começo?
[40] ...
(ANDRADE, Carlos Drummond de, Corpo. Rio de Janeiro: Record, 1984)
Os versos que resumem o real motivo do sentimento do eu-lírico em relação à “favela” são:
“Medo de que sintas como sou culpado”
“Tenho medo. Medo de ti, sem te conhecer,”
“Medo só de te sentir, encravada / Na coxa flava do Rio de Janeiro”
“Sei apenas do teu mau cheiro:”