Unit-AL 2020

TEXTO

    FABIANO curou no rasto a bicheira da novilha
raposa. Levava no aió um frasco de creolina, e se
houvesse achado o animal, teria feito o curativo
ordinário. Não o encontrou, mas supôs distinguir as
[5] pisadas dele na areia, baixou-se, cruzou dois gravetos
no chão e rezou. Se o bicho não estivesse morto,
voltaria para o curral, que a oração era forte.

    Cumprida a obrigação, Fabiano levantou-se com
a consciência tranquila e marchou para casa. Chegou-se a
[10]  beira do rio. A areia fofa cansava-o, mas ali, na lama
seca, as alpercatas dele faziam chape-chape, os
badalos dos chocalhos que lhe pesavam no ombro,
pendurados em correias, batiam surdos. A cabeça
inclinada, o espinhaço curvo, agitava os braços
[15] para a direita e para a esquerda. Esses movimentos
eram inúteis, mas o vaqueiro, o pai do vaqueiro, o
avô e outros antepassados mais antigos haviam-se
acostumado a percorrer veredas, afastando o mato
com as mãos. E os filhos já começavam a reproduzir
[20] o gesto hereditário.

    Chape-chape. Os três pares de alpercatas
batiam na lama rachada, seca e branca por cima,
preta e mole por baixo. A lama da beira do rio, calcada
pelas alpercatas, balançava.

[25]      A cachorra Baleia corria na frente, o focinho
arregaçado, procurando na catinga a novilha raposa.

    Fabiano ia satisfeito. Sim senhor, arrumara-se.
Chegara naquele estado, com a família morrendo
de fome, comendo raízes. Caíra no fim do pátio,
[30] debaixo de um juazeiro, depois tomara conta da casa
deserta. Ele, a mulher e os filhos tinham-se habituado
à camarinha escura, pareciam ratos - e a lembrança
dos sofrimentos passados esmorecera.

    Pisou com firmeza no chão gretado, puxou a
[35] faca de ponta, esgaravatou as unhas sujas. Tirou do
aió um pedaço de fumo, picou-o, fez um cigarro com
palha de milho, acendeu-o ao binga, pôs-se a fumar
regalado

    — Fabiano, você é um homem, exclamou em
[40] voz alta.

    Conteve-se, notou que os meninos estavam
perto, com certeza iam admirar-se ouvindo-o falar só.
E, pensando bem, ele não era homem: era apenas

um cabra ocupado em guardar coisas dos outros.
[45] Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e
os cabelos ruivos; mas como vivia em terra alheia,
cuidava de animais alheios, descobria-se, encolhia-se
na presença dos brancos e julgava-se cabra.

    Olhou em torno, com receio de que, fora
[50] os meninos, alguém tivesse percebido a frase
imprudente. Corrigiu-a, murmurando: 

    — Você é um bicho, Fabiano.
 Isto para ele era motivo de orgulho. Sim senhor,
um bicho, capaz de vencer dificuldades. 

RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 74ª ed. Rio, São Paulo: Record, 1994. p. 17-18

Analisando-se o fragmento de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e o inserindo no universo da obra, é correto afirmar acerca de sua função literária e/ou de seus elementos narrativos: 

I. Entrosamento entre homem e natureza, mesmo nas condições mais adversas, conforme registro “haviam-se acostumado a percorrer veredas, afastando o mato com as mãos. E os filhos já começavam a reproduzir o gesto hereditário.” (l. 17-20).

II. Utilização do discurso indireto livre em parte da obra, a exemplo da passagem do fragmento “Sim senhor, arrumara-se.” (l. 27).

III. Incorporação de palavras regionalistas que traduzam melhor a relação homem-natureza: “fez um cigarro com palha de milho, acendeu-o ao binga, pôs-se a fumar regalado.” (l. 36-38).

IV. Consciência de desvalorização da própria condição humana imposta pela estrutura social-econômica, como comprova o excerto “— Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta.” (l. 39-40).

V. Registros de monólogos interiores em algumas partes da novela, como em “— Você é um bicho, Fabiano.” (l. 52).

A alternativa em que todas as afirmativas indicadas estão corretas é a