TEXTO
Edmundo, o Cético
Cecília Meireles
Naquele tempo, nós não sabíamos o que fosse ceticismo. Mas Edmundo era cético. As pessoas
aborreciam-se e chamavam-no de teimoso. Era uma grande injustiça e uma definição errada.
Ele queria quebrar com os dentes os caroços de ameixa, para chupar um melzinho que há lá
dentro. As pessoas diziam-lhe que os caroços eram mais duros que os seus dentes. Ele quebrou os
[5] dentes com a verificação. Mas verificou. E nós todos aprendemos à sua custa. (O ceticismo também
tem o seu valor!)
Disseram-lhe que, mergulhando de cabeça na pipa d'água do quintal, podia morrer afogado.
Não se assustou com a ideia da morte: queria saber é se lhe diziam a verdade. E só não morreu
porque o jardineiro andava perto.
[10] Na lição de catecismo, quando lhe disseram que os sábios desprezam os bens deste mundo, ele
perguntou lá do fundo da sala: "E o rei Salomão?". Foi preciso a professora fazer uma conferência
sobre o assunto; e ele não saiu convencido. Dizia: "Só vendo.". E em certas ocasiões, depois de lhe
mostrarem tudo o que queria ver, ainda duvidava. "Talvez eu não tenha visto direito. Eles sempre
atrapalham." (Eles eram os adultos.)
[15] Edmundo foi aluno muito difícil. Até os colegas perdiam a paciência com as suas dúvidas.
Alguém devia ter tentado enganá-lo, um dia, para que ele assim desconfiasse de tudo e de todos.
Mas de si, não; pois foi a primeira pessoa que me disse estar a ponto de inventar o moto contínuo,
invenção que naquele tempo andava muito em moda, mais ou menos como, hoje, as aventuras
espaciais.
[20] Edmundo estava sempre em guarda contra os adultos: eram os nossos permanentes adversários.
Só diziam mentiras. Tinham a força ao seu dispor (representada por várias formas de agressão, da
palmada ao quarto escuro, passando por várias etapas muito variadas). Edmundo reconhecia a sua
inutilidade de lutar; mas tinha o brio de não se deixar vencer facilmente.
Numa festa de aniversário, apareceu, entre números de piano e canto (ah! delícias dos saraus de
[25] outrora!), apareceu um mágico com a sua cartola, o seu lenço, bigodes retorcidos e flor na lapela.
Nenhum de nós se importaria muito com a verdade: era tão engraçado ver saírem cinquenta fitas de
dentro de uma só... e o copo d'água ficar cheio de vinho...
Edmundo resistiu um pouco. Depois, achou que todos estávamos ficando bobos demais. Disse:
"Eu não acredito!" Foi mexer no arsenal do mágico e não pudemos ver mais as moedas entrarem por
[30] um ouvido e saírem pelo outro, nem da cartola vazia debandar um pombo voando... (Edmundo
estragava tudo. Edmundo não admitia a mentira. Edmundo morreu cedo. E quem sabe, meu Deus,
com que verdades?).
Fonte: Texto extraído do livro "Quadrante 2", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1962, pág. 122.Texto adaptado.
Marque a alternativa em que a interpretação dos termos destacados está ADEQUADA.
Em “Naquele tempo, nós não sabíamos o que fosse ceticismo. Mas Edmundo era cético. As pessoas aborreciam-se e chamavam-no de teimoso.” (linhas 1 e 2), o termo nós refere-se ao locutor do texto e aos colegas de infância – inclusive a Edmundo. O termo se retoma o substantivo pessoas, enquanto o termo no refere-se somente ao autor. Os verbos foram utilizados no pretérito perfeito com a função de demonstrar fato inacabado, fato habitual no passado, e reforça a descrição do personagem.
Em “Ele queria quebrar com os dentes os caroços de ameixa, para chupar um melzinho que há lá dentro.” (linhas 3 e 4), os termos destacados apresentam, respectivamente, o instrumento a ser utilizado para efetuar determinada ação e a condição para realizá-la. A oração destacada é classificada como oração adverbial.
Em “(Edmundo estragava tudo. Edmundo não admitia a mentira. Edmundo morreu cedo. E quem sabe, meu Deus, com que verdades?)”(linhas 31 e 32), o texto é finalizado com esses dizeres, apresentados, exclusivamente, no formato de períodos compostos, mostrando a perspectiva negativa do narrador em relação às atitudes do personagem principal.
Em “As pessoas diziam-lhe que os caroços eram mais duros que os seus dentes” (linha 4), o sentido do verbo dizer é marcado por dois complementos: o primeiro é indireto, apresentado em sua forma pronominal e, na interpretação do texto, estabelece a coesão, retomando o substantivo preposicionado a Edmundo; já o segundo complemento é direto, ou seja, não é preposicionado, está em forma oracional e se constitui com uma oração adverbial comparativa.