UECE 2016/2

Texto

 

Duelo antes da noite

 

[1]   No caminho a menina pegou uma pedra e  

atirou-a longe, o mais que pôde. O menino  

puxava a sua mão e reclamava da vagareza da  

menina. Deviam chegar até a baixa noite a  

[5] Encantado, e o menino sabia que ele era  

responsável pela menina e deveria manter uma  

disciplina. Que garota chata, ele pensou. Se eu  

fosse Deus, não teria criado as garotas, seria  

tudo homem igual a Deus. A menina sentia-se  

[10] puxada, reclamada, e por isso emitia uns sons de  

ódio: graças a Deus que eu não preciso dormir  

no mesmo quarto que você, graças a Deus que  

eu não vou morar nunca mais com você. Vamos  

e não resmunga, exclamou o menino. E o sol já  

[15] não estava sumindo? Isso nenhum dos dois  

perguntava porque estavam absortos na raiva de  

cada um. A estrada era de terra e por ela poucos  

passavam. Nem o menino nem a menina  

notavam que o sol começava a se pôr e que os  

[20] verdes dos matos se enchiam cada vez mais de  

sombras. Quando chegassem a Encantado o  

menino poria ela no Opala do prefeito e ela  

nunca mais apareceria. Ele não gosta de mim,  

pensou a menina cheia de gana. Ele deve estar  

[25] pensando: o mundo deveria ser feito só de  

homens, as meninas são umas chatas. O menino  

cuspiu na areia seca. A menina pisou sobre a  

saliva dele e fez assim com o pé para apagar o  

cuspe. 

[30]   Até que ficou evidente a noite. E o menino  

disse a gente não vai parar até chegar em  

Encantado, agora eu proíbo que você olhe pros  

lados, que se atrase. A menina não queria chorar  

e prendia-se por dentro porque deixar arrebentar  

[35] uma lágrima numa hora dessas é mostrar muita  

fraqueza, é mostrar-se muito menina. E na curva  

da estrada começaram a aparecer muitos  

caminhões apinhados de soldados e a menina  

não se conteve de curiosidade. Para onde vão  

[40] esses soldados? — ela balbuciou. O menino  

respondeu ríspido. Agora é hora apenas de  

caminhar, de não fazer perguntas, caminha! A  

menina pensou eu vou parar, fingir que torci o  

pé, eu vou parar. E parou. O menino sacudiu-a  

[45] pelos ombros até deixá-la numa vertigem  

escura. Depois que a sua visão voltou a adquirir  

o lugar de tudo, ela explodiu chamando-o de  

covarde. Os soldados continuavam a passar em  

caminhões paquidérmicos. E ela não chorava,  

[50] apenas um único soluço seco. O menino gritou  

então que ela era uma chata, que ele a deixaria  

sozinha na estrada que estava de saco cheio de  

cuidar de um traste igual a ela, que se ela não  

soubesse o que significa traste, que pode ter  

[55] certeza que é um negócio muito ruim. A menina  

fez uma careta e tremeu de fúria. Você é o  

culpado de tudo isso, a menina gritou. Você é o  

único culpado de tudo isso. Os soldados  

continuavam a passar. 

[60]   Começou a cair o frio e a menina tiritou  

balançando os cabelos molhados, mas o menino  

dizia se você parar eu te deixo na beira da  

estrada, no meio do caminho, você não é nada  

minha, não é minha irmã, não é minha vizinha,  

[65] não é nada.  

  E Encantado era ainda a alguns lerdos  

quilômetros. A menina sentiu que seria bom se o  

encantado chegasse logo para se ver livre do  

menino. Entraria no Opala e não olharia uma  

[70] única vez pra trás para se despedir daquele  

chato. 

  Encantado apareceu e tudo foi como o  

combinado. Doze e meia da noite e o  

Opala esperava a menina parado na frente da  

[75] igreja. Os dois se aproximaram do Opala tão  

devagarinho que nem pareciam crianças. O  

motorista bigodudo abriu a porta traseira e  

falou: pode entrar, senhorita. Senhorita... o  

menino repetia para ele mesmo. A menina se  

[80] sentou no banco traseiro. Quando o carro  

começou a andar, ela falou bem baixinho: eu  

acho que vou virar a cabeça e olhar pra ele com  

uma cara de nojo, vou sim, vou olhar. E olhou.  

Mas o menino sorria. E a menina não resistiu e  

[85] sorriu também. E os dois sentiram o mesmo nó  

no peito. 

(NOLL, João Gilberto. In: Romances e contos reunidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 690-692. Texto adaptado.)

 

Leia com atenção o trecho transcrito a seguir: “No caminho a menina pegou uma pedra e atirou-a longe, o mais que pôde. O menino puxava a sua mão e reclamava da vagareza da menina. Deviam chegar até a baixa noite a Encantado, e o menino sabia que ele era responsável pela menina e deveria manter uma disciplina. Que garota chata, ele pensou” (linhas 1-7). Atente ao que se diz sobre os verbos desse excerto.

 

I. O pretérito imperfeito (do indicativo), empregado no texto, em vez de reportar-se ao passado, parece neutralizar o valor desse passado, dando a impressão de que as ações se realizam ou pelo menos se estendem ao momento da fala.

II. Os verbos no pretérito perfeito do indicativo indicam que a ação ou as ações que estão sendo narradas aconteceram antes do momento em que fala o enunciador (narrador). Não é por acaso que os contos tradicionais são narrados nesse tempo verbal.

III. O verbo “dever”, que exprime obrigação, usado como auxiliar em uma locução verbal, tem o papel de modalizar o enunciado em que aparece (isto é, mostrar a relação do falante com o conteúdo daquilo que expressa). No enunciado em análise, o verbo “dever” aparece duas vezes como auxiliar nas seguintes locuções verbais: “deviam chegar” e “deveria manter”. A primeira, em virtude de “dever” estar no presente do indicativo, causa impressão de que o enunciador assume como certo o que diz o enunciado (sem dúvida eles devem “chegar até a baixa noite a Encantado”). Já a segunda, em virtude de o verbo “dever” vir no futuro do pretérito, produz a impressão de que o enunciador assume com reservas o conteúdo do seu enunciado.

 

Está correto o que se diz em 

a

I, II e III. 

b

I e II apenas. 

c

I e III apenas. 

d

II e III apenas. 

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