Texto
Coragem
[1] “A pior coisa do mundo é a pessoa não ter coragem na vida”. Pincei essa frase do relato de uma moça chamada
[2] Florescelia, nascida no Ceará e que passou (e vem passando) poucas e boas: a morte da mãe quando tinha dois
[3] anos, uma madrasta cruel, uma gravidez prematura, a perda do único homem que amou, uma vida sem porto fixo,
[4] sem emprego fixo, mas com sonhos diversos, que lhe servem de sustentação.
[5] Ela segue em frente porque tem o combustível que necessitamos para trilhar o longo caminho desde o
[6] nascimento até a morte. Coragem.
[7] Quando eu era pequena, achava que coragem era o sentimento que designava o ímpeto de fazer coisas
[8] perigosas, e por perigoso eu entendia, por exemplo, andar de tobogã, aquela rampa alta e ondulada em que a gente
[9] descia sentada sobre um saco de algodão ou coisa parecida.
[10] Por volta dos nove anos, decidi descer o tobogã, mas na hora H, amarelei. Faltou coragem. Assim como
[11] faltou também no dia em que meus pais resolveram ir até a Ilha dos Lobos, em Torres, num barco de pescador. No
[12] momento de subir no barco, desisti. Foram meu pai, minha mãe, meu irmão, e eu retornei sozinha, caminhando pela
[13] praia, até a casa da vó.
[14] Muita coragem me faltou na infância: até para colar durante as provas eu ficava nervosa.
[15] Mentir para pai e mãe, nem pensar. Ir de bicicleta até ruas muito distantes de casa, não me atrevia. Travada
[16] desse jeito, desconfiava que meu futuro seria bem diferente do das minhas amigas.
[17] Até que cresci e segui medrosa para andar de helicóptero, escalar vulcões, descer corredeiras d’água. No
[18] entanto, aos poucos fui descobrindo que mais importante do que ter coragem para aventuras de fim de semana, era
[19] ter coragem para aventuras mais definitivas, como a de mudar o rumo da minha vida se preciso fosse. Enfrentar
[20] helicópteros, vulcões, corredeiras e tobogãs exige apenas que tenhamos um bom relacionamento com a adrenalina.
[21] Coragem, mesmo, é preciso para terminar um relacionamento, trocar de profissão, abandonar um país que
[22] não atende nossos anseios, dizer não para propostas lucrativas porém vampirescas, optar por um caminho diferente
[23] do da boiada, confiar mais na intuição do que em estatísticas, arriscar-se a decepções para conhecer o que existe do
[24] outro lado da vida convencional. E, principalmente, coragem para enfrentar a própria solidão e descobrir o quanto
[25] ela fortalece o ser humano.
[26] Não subi no barco quando criança – e não gosto de barcos até hoje. Vi minha família sair em expedição pelo
[27] mar e voltei sozinha pela praia, uma criança ainda, caminhando em meio ao povo, acreditando que era medrosa.
[28] Mas o que parecia medo era a coragem me dando as boas vindas, me acompanhando naquele recuo solitário,
[29] quando aprendi que toda escolha requer ousadia.
MEDEIROS, Marta. A graça das coisas. Porto Alegre - RS: L&PM, 2014, p. 90-91.
Julgue as afirmações abaixo com base nas noções de sintaxe.
I. Há erro de regência em “tem o combustível que necessitamos” (linha 5).
II. Os verbos “resolveram” (linha 11) e “foram” (linha 12) estão no plural porque têm sujeito composto.
III. A colocação do pronome oblíquo em “que lhe servem de sustentação” (linha 4) obedece à norma padrão.
IV.De acordo com a norma culta, em “Enfrentar helicópteros, vulcões, corredeiras e tobogãs exige...” (linha 20), há desvio de concordância.
Está correto somente o que se afirma em
I e III.
II e III.
II e IV.
I, II e IV.
II, III e IV.