TEXTO:
Auto da Barca do Inferno
(Aproxima-se um corregedor com uma vara na mão e diz chegando à Barca do Inferno:)
Corregedor – Hou da barca?
Diabo – Que quereis?
Corregedor – Está aqui o senhor juiz.
Diabo – Oh amador de perdiz* / quantos processos trazeis?
Corregedor – Por trazê-los, bem vereis, / venho muito contrafeito.
Diabo – Como anda lá o Direito?
Corregedor – Nos autos constatareis.
Diabo – Ora, pois, entrai, vejamos / o que dizem tais papéis.
Corregedor – Para onde vai o batel?
Diabo – No inferno nós ancoramos.
Corregedor – Como? À terra dos demônios / há de ir um corregedor? [...]
Diabo – Ora, entrai nos negros fados. / Ireis ao lago dos cães / e vereis os escrivães / como estão bem prosperados.
Corregedor – Vão à terra dos danados / os novos evangelistas?
Diabo – Os mestres das fraudes vistas / lá estão bem atormentados [...]
*“amador de perdiz” – referência ao fato de os juízes aceitarem, como agrado, a doação de coelhos e perdizes.
VICENTE, GIL. Três autos: da alma; da barca do inferno; de Mofina Mendes. Livre adaptação de Walmir Ayala. Rio de Janeiro: Ediouro; São Paulo: Publifolha, 1997. p. 145 -153.
Sobre o trecho da cena transcrito e a obra de onde foi extraído, é correto afirmar:
I. A cena se inicia com a chegada do corregedor, que é representante do judiciário, à Barca do Inferno, quando o Diabo lhe dirige a primeira acusação: a de corrupção, por manipular a justiça em benefício próprio, com a aceitação de suborno sob a forma de presentes ou doações.
II. Na obra, através de farta argumentação e de provas forjadas, o corregedor consegue convencer o Diabo e o Anjo de sua inocência. Por isso, após ser perdoado, aceita o pedido de desculpas de ambos e se encaminha para a Barca do Paraíso, onde é recebido com muitos festejos e intensa louvação.
III. Na obra, o autor, para relativizar os conceitos de bem e mal, de certo e errado, evitando uma perspectiva maniqueísta, coloca circunstâncias em que o Anjo e o Diabo trocam de papéis e passam a dirigir, respectivamente, a Barca do Inferno e a Barca da Glória. Com isso, o julgamento se torna mais preciso e a punição mais justa.
IV. O cenário da obra é um porto onde se encontram ancoradas duas barcas: uma, guiada pelo Diabo, tem como destino o inferno; outra, guiada por um Anjo, leva ao paraíso. Nelas são acomodadas as pessoas que se aproximam e que já morreram, selecionadas pelo Diabo ou pelo Anjo, segundo sua conduta quando estavam vivas.
V. A obra é uma sátira social e moral, pois veicula criticas aos costumes impróprios ou pecados de figuras poderosas da época, que são julgadas e punidas com a condenação ao inferno. Trata-se de uma temática que, embora contextualizada no século XVI, em Portugal, guarda certa atualidade e pertinência com questões contemporâneas.
A alternativa em que todas as afirmativas indicadas estão corretas é a
I e III.
II e IV.
II e V.
I, IV e V.
II, III, e V.
O trecho apresentado é parte da obra 'Auto da Barca do Inferno', de Gil Vicente, que utiliza alegorias para criticar a sociedade de sua época. As afirmativas corretas são aquelas que melhor representam o conteúdo da obra e o trecho citado.
Na afirmativa I, percebe-se que o corregedor é acusado de corrupção pelo Diabo, o que corresponde ao teor crítico da obra em relação aos abusos do judiciário. A afirmativa IV descreve corretamente o cenário da obra, com as duas barcas representando destinos após a morte, baseados nas ações em vida dos personagens. A afirmativa V identifica a obra como sátira social, refletindo criticamente os costumes da época e ainda apresentando pertinência contemporânea.
As afirmativas II e III não correspondem à narrativa da obra. O corregedor não convence o Diabo e o Anjo de sua inocência, nem há troca de papéis entre o Anjo e o Diabo na condução das barcas.
Considere o contexto histórico e literário da obra e o papel representado pelos personagens.
Reflita sobre o cenário descrito na obra e seu simbolismo.
Analise se as afirmativas mantêm a essência crítica e alegórica presente na obra.
'Auto da Barca do Inferno' é uma obra do humanismo português que utiliza a sátira para criticar a sociedade. O cenário é um porto imaginário onde as almas dos mortos são julgadas e direcionadas ao Paraíso ou ao Inferno, dependendo de suas ações em vida. A obra é uma alegoria que representa a corrupção e os vícios da sociedade da época.