TEXTO:
(Ao abrir o pano, entram todos os atores, com
exceção do que vai representar Manuel, como se se
tratasse de uma tropa de saltimbancos, correndo, com
gestos largos, exibindo-se ao público. Se houver algum
[5] ator que saiba caminhar sobre as mãos, deverá entrar
assim. Outro trará uma corneta, na qual dará um alegre
toque, anunciando a entrada do grupo. Há de ser uma
entrada festiva, na qual as mulheres dão grandes voltas
e os atores agradecerão os aplausos, erguendo os
[10] braços, como no circo. A atriz que for desempenhar o
papel de Nossa Senhora deve vir sem caracterização,
para deixar bem claro que, no momento, é somente atriz.
Imediatamente após o toque de clarim, o Palhaço
anuncia o espetáculo.)
[15] PALHAÇO: (grande voz) Auto da Compadecida! O
julgamento de alguns canalhas, entre os quais um
sacristão, um padre, e um bispo, para exercício da
moralidade. (Toque de clarim.)
PALHAÇO: A intervenção de Nossa Senhora no
[20] momento propício, para triunfo da misericórdia. Auto da
Compadecida! (Toque de clarim.)
A COMPADECIDA: A mulher que vai desempenhar o
papel desta excelsa Senhora, declara-se indigna de tão
alto mister. (Toque de clarim.)
[25] PALHAÇO : Ao escrever esta peça, onde combate o
mundanismo, praga de sua igreja, o autor quis ser
representado por um palhaço, para indicar que sabe,
mais do que ninguém, que sua alma é um velho catre,
cheio de insensatez e de solércia. Ele não tinha o direito
[30] de tocar nesse tema, mas ousou fazê-lo, baseado no
espírito popular de sua gente, porque acredita que esse
povo sofre, é um povo salvo e tem direito a certas
intimidades. (Toque de clarim.)
PALHAÇO: Auto da Compadecida! O ator que vai
[35] representar Manuel, isto é, Nosso Senhor Jesus Cristo,
declara-se também indigno de tão alto papel, mas não
vem agora, porque sua aparição constituirá um grande
efeito teatral e o público seria privado desse elemento
de surpresa. (Toque de clarim.)
[40] PALHAÇO: Auto da Compadecida! Uma história
altamente moral e um apelo à misericórdia.
JOÃO GRILO: Ele diz “à misericórdia”, porque sabe que,
se fôssemos julgados pela Justiça, toda a nação seria
condenada.
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. 35 ed. Rio de Janeiro: Agir, 2005. p. 15-17.
Primeiramente, no presente auto, se figura que, no ponto que acabamos de espirar, chegamos subitamente a um rio, o qual per força havemos de passar em um de dous batéis que naquele porto estão, ou seja, um deles passa para o paraíso e o outro para o inferno: os quais batéis tem cada um seu arrais na proa: o do paraíso um anjo, e o do inferno um arrais infernal e um companheiro. O primeiro interlocutor é um Fidalgo que chega com um Paje, que lhe leva um rabo mui comprido e uma cadeira de espaldas.
Fidalgo — Esta barca aonde vai ora, que assim está apercebida?
Diabo — Vai para a ilha perdida, e há-de partir logo ess’ora.
Fidalgo — Para lá vai a senhora?
Diabo — Senhor, a vosso serviço.
Fidalgo — Parece-me isso cortiço...
Diabo — Porque a vedes lá de fora.
[...]
Fidalgo — Não há aqui outro navio?
Diabo — Não, senhor, que este fretastes, e primeiro que
expirastes me destes logo sinal.
Fidalgo — Que sinal foi esse tal?
Diabo — Do que vós vos contentastes.
Fidalgo — A estoutra barca me vou.
Hou da barca! Para onde is?
Ah, barqueiros! Não me ouvis?
[...]
Anjo — Que quereis?
Fidalgo — Que me digais, pois parti tão sem aviso, se a
barca do Paraíso é esta em que navegais.
Anjo — Esta é; que demandais?
Fidalgo — Que me deixeis embarcar.
Sou fidalgo de solar, é bem que me recolhais.
Anjo — Não se embarca tirania neste batel divinal.
VICENTE, Gil. Auto da Barca do Inferno. Disponível em: http:// www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ua00111a.pdf. Acesso em: 5 nov. 2014.
Comparando o texto de Ariano Suassuna, “Auto da Compadecida”, com o texto medieval de Gil Vicente, “Auto da Barca do Inferno”, é correto afirmar:
O “Auto da Compadecida” se propõe a analisar a postura moral do homem em sociedade, mas o “Auto da Barca do Inferno” apenas reproduz a fala das personagens, sem proposta de reflexão.
O texto de Ariano Suassuna, ao contrário do escrito por Gil Vicente, que reproduz uma cultura medieval, não apresenta uma percepção maniqueísta na construção ideológica do juízo final.
O perfil do “arrais infernal”, no texto de Gil Vicente, é reiterado, no de Ariano Suassuna, pela figura do Palhaço, que, de forma irônica, vai explicitando a postura moral de cada personagem.
Ariano Suassuna, assim como Gil Vicente, propõe uma reflexão sobre a moral dos homens na Terra por meio de personagens alegóricos e da simbologia maniqueísta do bem e do mal, contextualizados no momento do juízo final.
O “Auto da Compadecida”, do mesmo modo que o “Auto da Barca do Inferno”, reproduz um contexto ideológico marcado por uma concepção maniqueísta de que todos os homens eram maus e todas as alegorias místicas eram boas, representando, portanto, o paraíso.