USS 2017/2

TEXTO

 

A delicadeza dos dias

 

“Mãe, sabia que, quando a gente cresce, pode voltar a brincar com os brinquedos de criança?”, anunciou
minha afilhada Catarina, três anos e oito meses. E seguiu, em sua primeira declaração de ano-novo. “A
gente precisa dos brinquedos pra ir na faculdade. Eu vou ser escrevista.” Escrevista?, pontuou a mãe,
interrogativa. “Escrevista, mãe. Aquela pessoa que escreve pra ler.”
[5] Há quem se engane e pense que as crianças falam “errado” por não conhecerem ainda as palavras “certas”.
Não. Elas chegam às palavras exatas e depois nós as encaixotamos com a uniformidade do dicionário,
“corrigindo-as”. Alguém pode se confundir e achar que Catarina queria dizer “escritora” e não “escrevista”,
como disse. Nada. Escrevista era a palavra exata. Aquela pessoa que escreve não para ser lida, mas para ler,
como Catarina mesma esclareceu. Ler a si mesma. Uma vista de si.
[10] Catarina já se conta, passa os dias se contando, em longas narrativas. Ela sabe o que Fernandes, o
personagem do filme indiano Lunchbox, de Ritesh Batra, descobriu quando já começava a envelhecer:
“Acho que esquecemos as coisas se não tivermos a quem contá-las”. Um dia, por engano, Fernandes
recebeu no seu escritório uma marmita que não era para ele, mas era para ele: “O trem errado às vezes leva
ao destino certo”. A partir desse desacerto tão acertado, iniciou-se uma correspondência entre a mulher
[15] que cozinha e o homem que come. Fernandes, que se limitava a repetir os dias, passou a enxergar os dias
quando começou a escrever para ela.
Me lembrou de um outro filme, mais antigo, Cortina de fumaça, dirigido por Wayne Wang e Paul Auster.
Nele, Auggie Wren, dono de uma tabacaria, há anos tira todo dia, às oito da manhã, uma fotografia da
mesma esquina do Brooklin, em Nova York. Ele mostra esse álbum com 4 mil fotografias a um de seus
[20] fregueses, Paul Benjamin, que depois de virar algumas páginas diz: “São todas iguais”. Auggie responde:
“Sim, 4 mil dias comuns”. Ele sabe que, se olhar bem, Paul vai reconhecer a esquina. O homem diante dele
é um escritor, mas Auggie é um escrevista, como Catarina. Então, Paul finalmente descobre. Ele vê Ellen, a
mulher que amou e que morreu, numa das fotos. Ela está lá, na mesma esquina que agora já não poderia
ser a mesma. Ao ver a foto, Paul reencontra a si mesmo num outro tempo, porque, quando perdemos
[25] alguém que amamos, nosso luto também se dá por aquele que éramos com aquela pessoa. O álbum,
agora, já não tinha a mesma foto repetida centenas de vezes, mas centenas de fotos de esquinas diferentes.
Estamos intoxicados por acontecimentos, entupidos de imagens. Há sempre algo acontecendo com
muitos pontos de exclamação – ou fingindo acontecer para que de fato nada aconteça. E há a nossa reação
nas redes sociais – às vezes uma ilusão de ação. E nas viradas de ano há ainda as resoluções, que também
[30] pressupõem uma ação.

É no cinema e na literatura que nos enternecemos e derrubamos nossas lágrimas ao testemunhar as
sutilezas que esquecemos de enxergar ou não somos capazes de enxergar nos nossos dias de autômatos.
Em algum momento esquecemos do que sabe Catarina, paramos de nos contar. Alguém pode argumentar
que nunca tantos falaram sobre si e se registraram em selfies em todas as situações. Mas o que o selfie
[35] conta? Penso que há algo no selfie para além da crítica que em geral lhe fazem, a de ser um mero registro
do autocentrismo ou do narcisismo dessa época. O mesmo vale para muitos tweets e posts no Facebook. Há
qualquer coisa de pungente no selfie, uma expressão de nosso desespero por tentar provar que existimos,
já que não conseguimos nos sentir existindo. Melhor ainda se for um autorregistro com alguém famoso,
detentor de um certificado de existência validado pela mídia, que então seria estendido ao seu autor. Nesse
[40] sentido, o selfie não me exaspera, mas me emociona. Cada selfie é também a imagem de nossa ausência.
O contar de que fala Catarina, a escrevista, é outro. É por esse contar que sugiro que façamos não uma lista
de resoluções de ano-novo, mas uma lista de delicadezas que estiveram presentes no ano anterior, mas
que não vimos e não reconhecemos por termos nos tornado seres condenados à repetição.

Eliane Brum Adaptado de brasil.elpais.com, 05/01/2015.

Eliane Brum emprega diferentes recursos de linguagem para se aproximar de seus leitores, simulando um diálogo.

Um trecho que contém um desses recursos é:

a

Não. Elas chegam às palavras exatas e depois nós as encaixotamos (l. 6) 

b

“Acho que esquecemos as coisas se não tivermos a quem contá-las”. (l. 12) 

c

Há sempre algo acontecendo com muitos pontos de exclamação (l. 27-28)

d

O mesmo vale para muitos tweets e posts no Facebook. (l. 36)

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Resposta
A
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