TEXTO:
A cidade invisível e a cidade dissimulada
Salvador é uma cidade dissimulada. Jamais é o
que se diz dela, jamais se apresenta ao olhar em toda
sua plenitude. Como cidade barroca, é preciso que
todos os sentidos estejam atentos, aguçados e que,
[5] além deles, a imaginação permita brincar em seus jogos
de luz e sombra.
Salvador se apresentou a nós recusando todos
os estereótipos: nem todo mundo é de Oxum, nem
todos são católicos e muitos dos que o são também
[10] não são tão católicos assim; nem é para todos a terra
da felicidade, só para ficarmos nesses encantamentos.
A cidade de beira-mar, de vista para o mar, tem
também seus lugares centrais, suas cumeadas,
encostas e baixadas, cuja paisagem são casas, casas
[15] e mais casas, na movimentação morfológica dos sítios,
revelando suas fachadas, laterais e fundos
descarnados, sem reboco e sem cores de enfeite,
apenas o vermelho pálido dos blocos expostos e as
cores opacas da miséria sem maquiagem.
[20] A Cidade da Bahia é desigual e conflituosa. Alegre
e triste, rica, pobre e miserável.
Poderíamos levantar, como hipótese, que a
baianidade, como estilo de vida, está muito longe de
ser a imagem folclorizada de um povo lento, e até
[25] mesmo preguiçoso, sensual e devotado ao misticismo
e à voluptuosidade. É o cosmopolitismo, a capacidade
de digerir o diferente e internalizá-lo como coisa sua, e
de não poder ser definida como um tipo, como uma
representação em um único ícone, que faz da cidade
[30] da Bahia essa singularidade.
No campo social, a maioria da população
negro-mestiça continua a sofrer os efeitos da
escravidão, do peculiar e perverso processo de
libertação e das formas mais diversas de inserção
[35] étnica na economia de mercado, nos mais plurais
campos de interação social. São, em sua maioria, os
mais pobres, os menos tocados pelos mecanismos
institucionalizados de ascensão social. No campo
cultural, por sua vez, representam a própria identidade
[40] de Salvador e sua produção cultural tem lugar
privilegiado no mercado dos bens simbólicos.
A Velha Cidade, ainda em sua antiguidade
recente, era mimética em sua apropriação. Reduto da
burguesia colonial e remanescente no final do século
[45] XIX, tornou-se local de menos prestígio e consideração
e passou a multiplicar os espaços internos de suas
moradias para acolher gente mais pobre e cada vez
mais numerosa, gente de vida cada vez mais incerta
em busca de um lugar seguro. Essa gente se foi,
[50] desbotando a paisagem humana, substituída pelo
colorido vivíssimo de tantos azuis, verdes, amarelos e
rosas, entremeados de brancos estampados nas
fachadas desse casario recomposto ou refeito na
apressada restauração do Patrimônio da Humanidade.
[55] Quase em silêncio, não fossem os tambores do
Olodum, da Banda Didá e de outros grupos musicais,
também o toque dos berimbaus e o cântico de tantas
oficinas de música a compor a sonoridade de uma
época em que a indústria cultural investe pesado,
[60] retirando da tradição afro-brasileira sons e danças a
inovar, a cada instante, o repertório musical nacional.
A ilusão do Pelourinho negro/pardo/mulato chega
mesmo a parecer verdadeira, tal é a vitalidade dos
espetáculos e dos atores em cena para configurar, no
[65] cenário urbano colonial, a apresentação de uma peça
de época. Predomina, entretanto, a cultura hegemônica
europeizada/americanizada/moderna sobre a
afro-brasileira. São essas pessoas, muitas de fora,
que dominam o comércio lúdico/artístico/artesanal. Os
[70] negros pardos e mulatos estão lá trabalhando para servir
à indústria cultural, aos de fora, muitas vezes
fantasiados de negros, representando o exótico na
imagem de uma Bahia que poderia, muito bem, ser
reproduzida num quadro temático da Disneylândia, ou
[75] de uma escola de samba do Rio de Janeiro ou de São
Paulo.
A cidade invisível fere os olhos, extrai lágrimas,
mas também provoca o riso e excita. A velha Cidade
da Bahia é também moça, sensual, sedutora. É, toda
[80] ela, mistério, porque se recusa a ser desvendada.
ESPINHEIRA, Gey. A cidade invisível e a cidade dissimulada. In: LIMA, Paulo Costa (Org.) Quem faz Salvador? Salvador: UFBA, 2002. p. 24-34 (passim).
“A ilusão do Pelourinho negro/pardo/mulato chega mesmo
a parecer verdadeira, tal é a vitalidade dos espetáculos e
dos atores em cena para configurar, no cenário urbano
colonial, a apresentação de uma peça de época.” (l. 62-66)
Marque com V ou com F, conforme sejam verdadeiras ou falsas as afirmativas que explicitam interpretações do trecho em destaque.
( ) A qualidade dos espetáculos e dos atores em cena, nas atividades culturais do Pelourinho, constrói a ilusão de empoderamento de negros, pardos e mulatos.
( ) O adjetivo “verdadeira” confirma e reforça o papel central e de destaque desempenhado por negros, pardos e mulatos no Pelourinho e na economia da cidade.
( ) Há uma falácia quanto ao domínio expressivo da população negra, parda ou mulata no cenário do Pelourinho, sugerida pela qualidade dos espetáculos apresentados.
( ) A dinâmica cultural apresentada no Pelourinho só se torna viável pela sua expressão num cenário urbano colonial preservado, onde se evidenciam marcas históricas verdadeiras.
( ) A expressão “peça de época” põe em destaque a simulação de que negros, pardos e mulatos têm domínio sobre as atividades culturais apresentadas no Pelourinho.
A alternativa que contém a sequência correta, de cima para baixo, é a
F V F V V
V V F V F
V V V F F
V F V F V
F V V V F