Texto 2
O Verbo For
Vestibular de verdade era no meu tempo.
[50] Já estou chegando, ou já cheguei, à altura da
vida em que tudo de bom era no meu tempo;
meu e dos outros coroas. Acho inadmissível e
mesmo chocante (no sentido antigo) um coroa
não ser reacionário. Somos uma força histórica
[55] de grande valor. Se não agíssemos com o vigor
necessário — evidentemente o condizente com
a nossa condição provecta —, tudo sairia fora
de controle, mais do que já está. O vestibular,
é claro, jamais voltará ao que era outrora e
[60] talvez até desapareça, mas julgo necessário
falar do antigo às novas gerações e lembrá-lo
às minhas coevas (ao dicionário outra vez;
domingo, dia de exercício).
O vestibular de Direito a que me submeti,
[65] na velha Faculdade de Direito da Bahia, tinha
só quatro matérias: português, latim, francês
ou inglês e sociologia. Nada de cruzinhas,
múltipla escolha ou matérias que não
interessassem diretamente à carreira. Tudo
[70]escrito tão ruybarbosianamente quanto
possível, com citações decoradas,
preferivelmente.
Havia provas escritas e orais. A escrita já
dava nervosismo, da oral muitos nunca se
[75] recuperaram inteiramente, pela vida afora.
Tirava-se o ponto (sorteava-se o assunto) e
partia-se para o martírio, insuperável por
qualquer esporte radical desta juventude de
hoje.
[80] O maior público das provas orais era o
que já tinha ouvido falar alguma coisa do
candidato e vinha vê-lo "dar um show". Eu dei
show de português e inglês. O de português
até que foi moleza, em certo sentido. O
[85] professor José Lima, de pé e tomando um
cafezinho, me dirigiu as seguintes palavras
aladas:
— Dou-lhe dez, se o senhor me disser
qual é o sujeito da primeira oração do Hino
[90] Nacional!
— As margens plácidas — respondi
instantaneamente e o mestre quase deixa cair
a xícara.
— Por que não é indeterminado,
[95] "ouviram, etc."?
— Porque o "as" de "as margens plácidas"
não é craseado. Quem ouviu foram as margens
plácidas. É uma anástrofe, entre as muitas que
existem no hino. "Nem teme quem te adora a
[100] própria morte": sujeito: "quem te adora." Se
pusermos na ordem direta...
— Chega! — berrou ele. — Dez! Vá para a
glória! A Bahia será sempre a Bahia!
Quis o irônico destino, uns anos mais
[105] tarde, que eu fosse professor da Escola de
Administração da Universidade Federal da
Bahia e me designassem para a banca de
português, com prova oral e tudo. Eu tinha
fama de professor carrasco, que até hoje
[110] considero injustíssima, e ficava muito
incomodado com aqueles rapazes e moças
pálidos e trêmulos diante de mim. Uma bela
vez, chegou um sem o menor sinal de
nervosismo, muito elegante, paletó, gravata e
[115] abotoaduras vistosas. A prova oral era
bestíssima. Mandava-se o candidato(a) ler
umas dez linhas em voz alta (sim, porque
alguns não sabiam ler) e depois se perguntava
o que queria dizer uma palavra trivial ou outra,
[120] qual era o plural de outra e assim por diante.
Esse mal sabia ler, mas não perdia a pose. Não
acertou a responder nada. Então, eu, carrasco
fictício, peguei no texto uma frase em que a
palavra "for" tanto podia ser do verbo "ser"
[125] quanto do verbo "ir". Pronto, pensei. Se ele
distinguir qual é o verbo, considero-o um
gênio, dou quatro, ele passa e seja o que Deus
quiser.
— Esse "for" aí, que verbo é esse?
[130] Ele considerou a frase longamente, como
se eu estivesse pedindo que resolvesse a
quadratura do círculo, depois ajeitou as
abotoaduras e me encarou sorridente.
— Verbo for.
[135] — Verbo o quê?
— Conjugue aí o presente do indicativo
desse verbo.
— Eu fonho, tu fões, ele fõe — recitou
[140] ele, impávido. — Nós fomos, vós fondes, eles
fõem.
Não, dessa vez ele não passou. Mas, se
perseverou, deve ter acabado passando e hoje
há de estar num posto qualquer do Ministério
[145] da Administração ou na equipe econômica, ou
ainda aposentado como marajá, ou as três
coisas. Vestibular, no meu tempo, era muito
mais divertido do que hoje e, nos dias que
correm, devidamente diplomado, ele deve
[150] estar fondo para quebrar. Fões tu? Com quase
toda a certeza, não. Eu tampouco fonho. Mas
ele fõe.
RIBEIRO, João Ubaldo. O Conselheiro Come. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 2000. p. 20-23.
A crônica de João Ubaldo tem uma estrutura curiosa. Escreva V para o que for verdadeiro e F, para o que for falso sobre essa estrutura.
( ) O primeiro enunciado da crônica, que é também o primeiro da introdução (linha 49), expressa a ideia central do texto.
( ) A introdução é interrompida já na linha 49.
( ) Da linha 50 até a linha 58, quando retoma o enunciado introdutório, o enunciador faz uma digressão ou divagação, afastando-se do tema principal do texto.
( ) A introdução de pequenos fatos narrados levanos a entender que o texto, na realidade, não é uma crônica. Ele configura um novo tipo de texto que poderíamos denominar de gênero misto.
( ) A conclusão da crônica começa na linha 147, com o vocábulo “vestibular”. A partir dessa linha, poderíamos ter um novo parágrafo.
Está correta, de cima para baixo, a seguinte sequência:
F, F, V, V, V.
V, V, F, F, V.
V, V, V, F, V.
F, F, V, V, F.