Texto 1
Tempo Incerto
[1] Os homens têm complicado tanto o
mecanismo da vida que já ninguém tem
certeza de nada: para se fazer alguma coisa
é preciso aliar a um impulso de aventura
[5] grandes sombras de dúvida. Não se acredita
mais nem na existência de gente honesta; e
os bons têm medo de exercitarem sua
bondade, para não serem tratados de
hipócritas ou de ingênuos.
[10] Chegamos a um ponto em que a virtude
é ridícula e os mais vis sentimentos se
mascaram de grandiosidade, simpatia,
benevolência. A observação do presente
leva-nos até a descer dos exemplos do
[15] passado: os varões ilustres de outras eras
terão sido realmente ilustres? Ou a História
nos está contando as coisas ao contrário,
pagando com dinheiros dos testamentos a
opinião dos escribas?
[20] Se prestarmos atenção ao que nos dizem
sobre as coisas que nós mesmos
presenciamos — ou temos que aceitar a
mentira como a arte mais desenvolvida do
nosso tempo, ou desconfiaremos do nosso
[25] próprio testemunho, e acabamos no
hospício!
Pois assim é, meus senhores! Prestai
atenção às coisas que vos contam, em
família, na rua, nos cafés, em várias letras
[30] de forma, e dizei-me se não estão incertos
os tempos e se não devemos todos andar de
pulga atrás da orelha!
A minha esperança estava no fim do
mundo, com anjos descendo do céu; anjos
[35] suaves e anjos terríveis; os suaves para
conduzirem os que se sentarão à direita de
Deus, e os terríveis para os que se dirigem
ao lado oposto. Mas até o fim do mundo
falhou; até os profetas se enganam, a
[40] menos que as rezas dos justos tenham
podido adiar a catástrofe que, afinal, seria
também uma apoteose. E assim
continuaremos a quebrar a cabeça com
estes enigmas cotidianos.
[45] No tempo de Molière, quando um criado
dava para pensar, atrapalhava tudo. Mas
agora, além dos criados, pensam os patrões,
as patroas, os amigos e inimigos de uns e
de outros e todo o resto da massa humana.
[50] E não só pensam, como também pensam
que pensam! E além de pensarem que
pensam, pensam que têm razão! E cada um
é o detentor exclusivo da razão!
Pois de tal abundância de razão é que
[55] se faz a loucura. Os pedestres pensam que
devem andar pelo meio da rua. Os
motoristas pensam que devem pôr os
veículos nas calçadas. Até os bondes, que
mereciam a minha confiança, deram para
[60] sair dos trilhos. Os analfabetos, que deviam
aprender, ensinam! Os ladrões vestem-se de
policiais, e saem por aí a prender os
inocentes! Os revólveres, que eram
considerados armas perigosas, e para os
[65] quais se olhava a distância, como quem
contempla a Revolução Francesa ou a
Guerra do Paraguai — pois os revólveres
andam agora em todos os bolsos, como
troco miúdo. E a vocação das pessoas, hoje
[70] em dia, não é para o diálogo com ou sem
palavras, mas para balas de diversos
calibres. Perto disso, a carestia da vida é um
ramo de flores. O que anda mesmo caro é a
alma. E o Demônio passeia pelo
[75] mundo, glorioso e impune.
(Cecília Meireles. In: Escolha o seu sonho. p. 48-49.)
Atente para o seguinte enunciado: E não só pensam, como também pensam que pensam! E além de pensarem que pensam, pensam que têm razão! (linhas 50-52).
Sobre ele afirma-se que
I. poderia ser reescrito da seguinte maneira, para evitar repetição do verbo pensar: E não só raciocinam, como também pensam que raciocinam! E além de acharem que raciocinam, supõem que têm razão!
II. tem o ritmo acentuado em decorrência do eco provocado pela repetição da forma verbal pensam.
III. alcança, com a repetição do verbo pensar, dois objetivos: enfatizar o ato de raciocinar ou refletir e, ao mesmo tempo, ironizar o exercício do raciocínio praticado por pessoas supostamente ignorantes.
Está correto o que se diz em
I, II e III.
II apenas.
II e III apenas.
I e II apenas.