UECE 2010

Texto 1

 

Felicidade clandestina

 

[1]   Ela era gorda, baixa, sardenta e de  

cabelos crespos, meio arruivados. Tinha  

um busto enorme, enquanto nós todas  

ainda éramos achatadas. Como se não  

[5] bastasse, enchia os dois bolsos da blusa,  

por cima do busto, com balas. Mas possuía  

o que qualquer criança devoradora de  

histórias gostaria de ter: um pai dono de  

livraria. 

[10]   Pouco aproveitava. E nós menos ainda.  

Mas que talento tinha para a crueldade.  

Ela toda era pura vingança, chupando  

balas com barulho. Como essa menina  

devia nos odiar, nós que éramos  

[15] imperdoavelmente bonitinhas, esguias,  

altinhas, de cabelos livres. Comigo  

exerceu com calma ferocidade o seu  

sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem  

notava as humilhações a que ela me  

[20] submetia: continuava a implorar-lhe  

emprestados os livros que ela não lia. 

  Até que veio para ela o magno dia de  

começar a exercer sobre mim uma tortura  

chinesa. Como casualmente, informou-me  

[25] que possuía As reinações de Narizinho, de  

Monteiro Lobato. 

  Era um livro grosso, meu Deus, era um  

livro para se ficar vivendo com ele,  

comendo-o, dormindo-o. E completamente  

[30] acima de minhas posses. Disse-me que eu  

passasse pela sua casa no dia seguinte e  

que ela o emprestaria. 

  No dia seguinte, fui à sua casa  

literalmente correndo. Não me mandou  

[35] entrar. Olhando bem para meus olhos,  

disse-me que havia emprestado o livro a  

outra menina, e que eu voltasse no outro  

dia para buscá-lo. 

  Mas não ficou simplesmente nisso. O  

[40] plano secreto da filha do dono da livraria  

era tranquilo e diabólico. No dia seguinte  

lá estava eu à porta de sua casa, com um  

sorriso e o coração batendo. Para ouvir a  

resposta calma: o livro ainda não estava  

[45] em seu poder, que eu voltasse no dia  

seguinte.

  E assim continuou. Quanto tempo? Não  

sei. Ela sabia que era tempo indefinido,  

enquanto o fel não escorresse todo de seu  

[50] corpo grosso. Eu já começara a adivinhar  

que ela me escolhera para eu sofrer, às  

vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo,  

às vezes aceito: como se quem quer me  

fazer sofrer esteja precisando  

[55] danadamente que eu sofra. 

  Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua  

casa, sem faltar um dia sequer.  

  Até que um dia, quando eu estava à  

porta de sua casa, ouvindo humilde e  

[60] silenciosa a sua recusa, apareceu sua  

mãe. Ela devia estar estranhando a  

aparição muda e diária daquela menina à 

porta de sua casa. Pediu explicações a nós  

duas. Houve uma confusão silenciosa,  

[65] entrecortada de palavras pouco  

elucidativas. A senhora achava cada vez  

mais estranho o fato de não estar  

entendendo. Até que essa mãe boa  

entendeu. Voltou-se para a filha e com  

[70] enorme surpresa exclamou: mas este livro  

nunca saiu daqui de casa e você nem quis  

ler! 

  E o pior para essa mulher não era a  

descoberta do que acontecia. Devia ser a  

[75] descoberta horrorizada da filha que tinha.  

Ela nos espiava em silêncio: a potência de  

perversidade de sua filha desconhecida e a  

menina loura em pé à porta, exausta, ao  

vento das ruas de Recife. Foi então que,  

[80] finalmente se refazendo, disse firme e  

calma para a filha: você vai emprestar o  

livro agora mesmo. E para mim: “E você  

fica com o livro por quanto tempo quiser”.  

Entendem? Valia mais do que me dar o  

[85] livro: “pelo tempo que eu quisesse” é tudo  

o que uma pessoa, grande ou pequena,  

pode ter a ousadia de querer. 

  Como contar o que se seguiu? Eu  

estava estonteada, e assim recebi o livro  

[90] na mão. Acho que eu não disse nada.  

Peguei o livro. Não, não saí pulando como  

sempre. Saí andando bem devagar. Sei  

que segurava o livro grosso com as duas  

mãos, comprimindo-o contra o peito.  

[95] Quanto tempo levei até chegar em casa,  

também pouco importa. Meu peito estava  

quente. Meu coração pensativo. 

  Chegando em casa, não comecei a ler. 

Fingia que não o tinha, só para depois ter  

[100] o susto de o ter. Horas depois abri-o, li  

algumas linhas maravilhosas, fechei-o de  

novo, fui passear pela casa, adiei ainda  

mais indo comer pão com manteiga, fingi  

que não sabia onde guardara o livro,  

[105] achava-o, abria-o por alguns instantes.  

Criava as mais falsas dificuldades para  

aquela coisa clandestina que era a  

felicidade. A felicidade sempre iria ser  

clandestina para mim. Parece que eu já  

[110] pressentia. Como demorei! Eu vivia no  

ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu  

era uma rainha delicada. 

  Às vezes sentava-me na rede,  

balançando-me com o livro aberto no colo,  

[115] sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. 

  Não era mais uma menina com um 

livro: era uma mulher com o seu amante. 

(Clarice Lispector. Clarice na cabeceira. p. 185-188. Adaptação.)

 

Observe o que se diz sobre o seguinte enunciado: “Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o.” (linhas 27-29).

 

I - Em “comendo-o, dormindo-o”, observam-se duas extensões de sentido e o uso de uma regência não convencional.

II - Em “dormindo-o”, a narradora toma como transitivo direto um verbo intransitivo, forçando o paralelismo sintático com “comendo-o”.

III - O emprego de “comendo-o, dormindo-o” intensifica a relação quase erótica da personagem-narradora com os livros.

 

Está correto o que se diz

a

apenas em I. 

b

apenas em I e II. 

c

apenas em II e III. 

d

em I, II e III.

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Resposta
D
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