Texto 1: De currais e caricaturas
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Nada mais coerente, portanto, do que criarmos um movimento em busca de indenização, certo? Errado. O exemplo anterior [sobre a perseguição aos alemães no Brasil no período da Segunda Guerra] serve apenas para mostrar que as coisas não são tão simples quanto parecem. Nos anos 1940, os japoneses que viviam no Brasil sofreram ainda mais que os alemães.
O mesmo pode ser dito de judeus, árabes, poloneses e italianos. Não foram apenas os índios e os negros que padeceram nas garras de um Estado imaturo e elitizado como o nosso, ainda que tenham padecido numa escala maior e mais documentada. Se procurarmos nos livros certos, descobriremos que todos os grupos étnicos, religiosos e sexuais teriam direito a alguma forma de reparação.
Pois é aí que reside o problema.
Se você acredita que desencavar rancores contribui para o amadurecimento do país, está guiando por uma contramão arriscada, da qual é sempre difícil retornar. Em vez de resolverem as demandas das quais se originaram, as iniciativas de reparação histórica e as admoestações politicamente corretas que as acompanham têm o poder de complicar ainda mais a situação. Normalmente transformam-se em bandeiras de políticos irresponsáveis que querem ver o circo pegar fogo para se dar bem nas urnas. As consequências são evidentes: mais do que polarizada, a sociedade brasileira está “guetificada”, e não apenas por razões étnicas ou político-partidárias.
Das igrejas que lutam contra a descriminalização do aborto aos coletivos feministas sediados em universidades, das ações dos grupos LGBT às bancadas conservadoras que cunharam a expressão “heterofobia”, parece que todo mundo quer vestir a capa do Supercidadão e sair voando para salvar o planeta. De repente começamos a nos ver como membros de clãs que sentem a obrigação de erigir totens para impor nossa verdade à vizinhança. Quem discorda é “ignorante” e por isso merece a fogueira. Nunca é demais lembrar que a ascensão dos movimentos de autoafirmação minoritária foi uma das maiores vitórias do nosso tempo, mas – muita calma nessa hora – a radicalização de palavras de ordem e o resgate forçado de ressentimentos transformaram essa conquista numa faca de dois gumes.
Vivemos num período tão complexo que talvez seja impossível encontrar alguém que possa se definir sem ressalvas. Diante da confusão, apelar para o estereótipo tornou-se a saída mais cômoda. De todas as caricaturas que passaram a simbolizar as mazelas da humanidade, o Homem Branco Ocidental parece ser a mais recorrente, como se todos os homens brancos, sem exceção, fossem racistas, machistas e homofóbicos. Se você pertence a esse grupo, já deve ter sido silenciado em algum debate por aí. Não importa sua opinião, se é a favor ou contra, pois já foi tachado como o machista do grupo e ponto-final. Em compensação, a caricatura que se costuma desenhar como resposta também não deixa de ser injusta: a feminista furibunda que pensa pouco e grita muito é outro dos estereótipos que criamos para empobrecer o debate.
Ninguém gosta de receber lições de moral por aquilo que é. Por isso, antes de leis arbitrárias elaboradas por “iluminados” e impostas a uma população que ainda não teve tempo de digerir preconceitos ancestrais, precisamos é de educação igualitária e multicultural para todos. Conhecer a cultura daqueles que consideramos diferentes é a melhor maneira de nos aceitarmos coletivamente, e não apenas de nos “tolerarmos”. A “guetificação” não é boa para ninguém. Se insistirmos nisso, acabaremos voltando aos currais de arame farpado.
TENFEN, Maicon. Revista Veja. Edição 2499, de 12 de outubro de 2016. p. 62-63. Fragmento adaptado.
Assinale a alternativa que melhor resume o texto 1.
As demandas de reparação histórica estão na raiz de todos os males das sociedades modernas, por duas razões: de um lado colocam-se as igrejas e os políticos, que elaboram leis arbitrárias; de outro, as minorias, que querem impor, na base do grito e do patrulhamento ideológico, o resgate de seus ressentimentos. Todavia, ambos erram porque não consideram a possibilidade da educação igualitária e multicultural.
De uma forma ou de outra, todos pertencemos a um clã político, religioso, étnico-racial ou sexual. A partir desse lugar, construímos estereótipos que sustentam nossos pontos-de-vista, para o bem ou para o mal. Quem discorda merece a morte. O melhor exemplo dessa guetização é o movimento feminista, que luta contra o aborto.
O crescimento dos movimentos de autoafirmação das minorias é responsável pela concepção político-partidária de que todos os grupos étnicos, religiosos e sexuais têm direito a alguma forma de reparação. Nesse contexto, ser um Homem Branco Ocidental representa um pecado original, que precisa ser combatido, pois não existem outros meios de eliminar os preconceitos.
Os movimentos de reparação histórica e as exigências do politicamente correto estão nos levando a um processo inteiramente novo – a guetificação. Quem discorda sofre patrulhamento, é silenciado. Embora a ascensão e a autoafirmação das minorias seja uma grande conquista atual, a radicalização em favor da reparação histórica não é o melhor caminho. O que precisamos é de educação igualitária e multicultural.