TEXTO:
[ 1 ] A produção em série, em escala gigantesca, impõe
em todo lado as suas pautas obrigatórias de consumo.
Esta ditadura da uniformização obrigatória é mais
devastadora que qualquer ditadura do partido único:
[ 5 ] impõe, no mundo inteiro, um modo de vida que reproduz
os seres humanos como fotocópias do consumidor
exemplar.
O sistema fala em nome de todos, dirige a todos
suas ordens imperiosas de consumo, difunde, entre todos
[ 10 ] a febre compradora. A maioria, que se endivida para ter
coisas, termina por ter nada mais que dívidas para pagar
dívidas, as quais geram novas dívidas, e acaba a consumir
fantasias que, por vezes, materializa delinquindo.
Esta civilização não deixa dormir as flores, nem as
[15 ] galinhas, nem as pessoas. Nas estufas, as flores são
submetidas à luz contínua, para que cresçam mais
depressa. Nas fábricas de ovos, as galinhas também
estão proibidas de ter a noite. E as pessoas estão
condenadas à insônia, pela ansiedade de comprar e pela
[ 20 ] angústia de pagar. Este modo de vida não é muito bom
para as pessoas, mas é muito bom para a indústria
farmacêutica. Os EUA consomem a metade dos
sedativos, ansiolíticos e demais drogas químicas que
se vendem legalmente no mundo, e mais da metade
[25 ] das drogas proibidas que se vendem ilegalmente, o que
não é pouca coisa se se considerar que os EUA têm
apenas cinco por cento da população mundial.
Invisível violência do mercado: a diversidade é
inimiga da rentabilidade e a uniformidade manda. O
[30 ] consumidor exemplar é o homem quieto. Esta civilização,
que confunde a quantidade com a qualidade, confunde a
gordura com a boa alimentação. O país que inventou as
comidas e bebidas light, os diet food e os alimentos fat
free tem a maior quantidade de gordos do mundo. O
[35 ] consumidor exemplar só sai do automóvel para trabalhar
e para ver televisão. Sentado perante o pequeno écran,
passa quatro horas diárias a devorar comida de plástico.
As massas consumidoras recebem ordens num
idioma universal: a publicidade conseguiu o que o
[40 ]esperanto quis e não pôde. Tempo livre, tempo prisioneiro:
as casas muito pobres não têm cama, mas têm televisor
e o televisor tem a palavra. Comprado a prazo, esse
animalejo prova a vocação democrática do progresso:
não escuta ninguém, mas fala para todos. Pobres e ricos
[45 ] conhecem, assim, as virtudes dos automóveis do último
modelo, e pobres e ricos inteiram-se das vantajosas
taxas de juros que este ou aquele banco oferece.
Os peritos sabem converter as mercadorias em
conjuntos mágicos contra a solidão. As coisas têm
[ 50 ] atributos humanos: acariciam, acompanham,
compreendem, ajudam, o perfume te beija e o automóvel
é o amigo que nunca falha. A cultura do consumo fez da
solidão o mais lucrativo dos mercados. A publicidade
não informa acerca do produto que vende, ou raras vezes
[55 ] o faz. Isso é o que menos importa. A sua função primordial
consiste em compensar frustrações e alimentar fantasias.
Sempre ouvi dizer que o dinheiro não produz a felicidade,
mas qualquer espectador pobre de TV tem motivos de
sobra para acreditar que o dinheiro produz algo tão
[ 60 ] parecido que a diferença é assunto para especialistas.
O shopping center, ou shopping mall, vitrine de todas
as vitrines, impõe a sua presença avassaladora. As
multidões acorrem, em peregrinação, a este templo maior
das massas do consumo. A maioria dos devotos
[ 65 ] contempla, em êxtase, as coisas que os seus bolsos
não podem pagar, enquanto a minoria compradora
submete-se ao bombardeio da oferta incessante e
extenuante.
A cultura do consumo, cultura do efêmero, condena
[ 70 ] tudo ao desuso mediático. Tudo muda ao ritmo
vertiginoso da moda, posta ao serviço da necessidade
de vender. As coisas envelhecem num piscar de olhos,
para serem substituídas por outras coisas de vida fugaz.
Paradoxalmente, os shoppings centers, reinos do fugaz,
[ 75 ] oferecem com o máximo êxito a ilusão da segurança.
Eles resistem fora do tempo, sem idade e sem raiz,
sem noite e sem dia e sem memória, e existem fora do
espaço, para além das turbulências da perigosa
realidade do mundo.
[ 80 ] A injustiça social não é um erro a corrigir, nem um
defeito a superar: é uma necessidade essencial. Não há
natureza capaz de alimentar um shopping center do
tamanho do planeta.
GALEANO, Eduardo. O império do consumo. Disponível em: <http:// www.cartacapital.com.br/economia/o-imperio-do-consumo>. Acesso em: 20 out. 2016 (passim).
“A injustiça social não é um erro a corrigir” (l. 80).
Com essa afirmativa, o autor introduz uma conclusão que está corretamente explicitada em
A sociedade de consumo depende da existência de diferenças sociais; portanto a injustiça social é condição necessária e inerente à sua existência.
A sociedade de consumo corrige a injustiça social; nela, todos têm o direito de escolher livremente os bens de consumo que desejarem possuir.
A injustiça social constitui uma falácia, já que os recursos disponíveis no planeta são suficientes e podem ser equitativamente distribuídos.
Justiça ou injustiça social constituem contradições passíveis de superação a partir do avanço tecnológico possibilitado pela sociedade de consumo.
Injustiça social é uma expressão abstrata, que não abarca os problemas mais graves decorrentes do rápido avanço da sociedade de consumo.