TEXTO 1
A carroça dos cachorros
Lima Barreto
Quando de manhã cedo, saio da minha casa, triste e saudoso da minha mocidade que se foi infecunda, na rua eu vejo o espetáculo mais engraçado desta vida.
Amo os animais e todos eles me enchem do prazer da natureza.
Sozinho, mais ou menos esbodegado, eu, pela manhã, desço a rua e vejo.
O espetáculo mais curioso é o da carroça dos cachorros. Ela me lembra a antiga caleça dos ministros de Estado, no tempo do Império, quando eram seguidas por duas praças de cavalaria de polícia.
Era no tempo da minha meninice e eu me lembro disso com as maiores saudades.
– Lá vem a carrocinha! – dizem.
E todos os homens, mulheres e crianças se agitam e tratam de avisar os outros.
Diz Dona Marocas a Dona Eugênia:
– Vizinha! Lá vem a carrocinha! Prenda o Jupi!
E toda a “avenida” se agita e os cachorrinhos vão presos e escondidos.
Esse espetáculo tão curioso e especial mostra bem de que forma profunda nós homens nos ligamos aos animais.
Nada de útil, na verdade, o cão nos dá; entretanto, nós o amamos e nós o queremos.
Quem os ama mais, não somos nós os homens; mas são as mulheres e as mulheres pobres, depositárias por excelência daquilo que faz a felicidade e infelicidade da humanidade – o Amor.
São elas que defendem os cachorros dos praças de polícia e dos guardas municipais; são elas que amam os cães sem dono, os tristes e desgraçados cães que andam por aí à toa.
Todas as manhãs, quando vejo semelhante espetáculo, eu bendigo a humanidade em nome daquelas pobres mulheres que se apiedam pelos cães.
A lei, com a sua cavalaria e guardas municipais, está no seu direito em persegui-los; elas, porém, estão no seu dever em acoitá-los.
Marginália, 20-9-1919 BARRETO, Lima. Crônicas escolhidas. São Paulo: Ática/Folha de São Paulo, 1995. pp. 51-2
TEXTO 2
[...]
Nessa perspectiva, as realidades sociais, isto é, o conteúdo pré-romanesco, embora escolhidas e elaboradas pelo ponto de vista afetivo e polêmico do narrador, não parecem, de modo algum, forçadas a ilustrar inclinações puramente subjetivas. O resultado é um estilo ao mesmo tempo realista e intencional cujo limite inferior é a crônica.
Pois nos romances de Lima Barreto há, sem dúvida, muito de crônica: ambientes, cenas quotidianas, tipos de café, de jornal, da vida burocrática, às vezes só mencionados ou esboçados, naquela linguagem fluente e desambiciosa que se sói atribuir ao gênero. O tributo que o romancista pagou ao jornalista (aliás, ao bom jornalista) foi considerável: mas a prosa de ficção em língua portuguesa, em maré de academismo, só veio a lucrar com essa descida de tom, que permitiu à realidade entrar sem máscara no texto literário. Hoje, ao lermos os romances de Marques Rebelo ou de Érico Veríssimo, sabemos devidamente ajuizar da modernidade estilística de Lima Barreto.
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 44ª ed. São Paulo: Cultrix, 2007. pp.318-9.
Que trecho do texto A carroça dos cachorros, de Lima Barreto, melhor ilustra a seguinte afirmativa de Alfredo Bosi: “O resultado é um estilo ao mesmo tempo realista e intencional cujo limite inferior é a crônica”?
“Quando de manhã cedo, saio da minha casa, triste e saudoso da minha mocidade que se foi infecunda...”
“Diz Dona Marocas a Dona Eugênia: - Vizinha! Lá vem a carrocinha! Prenda o Jupi!”
“Nada de útil, na verdade, o cão nos dá.”
“Quem os ama mais, não somos nós os homens; mas são as mulheres e as mulheres pobres...”
“Todas as manhãs, quando vejo semelhante espetáculo, eu bendigo a humanidade...”