Texto 1
[1] Veja só, Barbie, daqueles primeiros dias da minha quarentena parece que lembro cada
detalhe do que vi, pensei, senti... estava me aventurando pelo desconhecido, tinha de
estar alerta e atenta a tudo. Já não sou capaz de reproduzir, assim, detalhadamente, em
sequência quase exata, os caminhos que percorri depois que me soltei de uma vez, à
[5] deriva de corpo e alma. Esses já não eram propriamente caminhos, eram sucessivos
buracos, frestas, rachaduras na superfície da cidade pelas quais eu ia passando de
mundo em mundo, ou era vagar por mundo nenhum...
Eu nem percebi, naquele dia, quando saí de casa atrás de um quase imaginário, um
vago Cícero Araújo, que estava, na verdade, correndo atrás de um coelho branco de olhos
[10] vermelhos, colete e relógio, que ia me levar pra um buraco, outro mundo. Também, que
importância tinha? Acho que eu teria ido de qualquer jeito, só para cair em algum mundo,
sair daquele estado de suspensão da minha vida num entremundo, sem nem por um
momento me perguntar como nem pra onde havia de voltar
Que engraçada é a cabeça da gente, não é, Barbie?, mas você não deve perceber
[15] que mistério é cabeça de gente, você não é gente, sua pobre cabecinha oca. Afe, cansei.
Agora acho que preciso parar de escrever, inventar um jantar. Não lhe ofereço pra não
atrapalhar sua dieta e não estragar sua cinturinha tão incrível. Cansei de tanto andar com
esta caneta pelas suas linhas, desde muito pra lá da Protásio até a Bento. Mas, “be a
good girl”, fique quieta aí, durma bem, que amanhã mesmo volto cedo pra fazer você subir
[20] comigo à Vila Maria Degolada. Fique tranquila: ali não há mais o costume de degolarem
Marias e nem sequer de jogar xadrez com peças vivas. Nem eu nem você somos Marias
REZENDE, Maria Valéria. Quarenta dias. I Ed. Objetiva, Rio de Janeiro, 2014, p.102.
Em relação à obra Quarenta dias, Maria Valéria Rezende, e ao Texto 1, assinale (V) para a proposição verdadeira e (F) para a falsa.
( ) A leitura da obra leva o leitor a inferir que o título da obra bem como a peregrinação de Alice, por quarenta dias, lembram os quarenta dias em que Jesus permaneceu no deserto, onde teve uma peregrinação sofrida, mas necessária para a preparação de um encontro com Deus. Enquanto que os quarentas dias de perambulação de Alice, por Porto Alegre, foram necessários para criar uma nova aliança com ela, um reencontro consigo mesma.
( ) As expressões destacadas em “da Protásio até a Bento” (linha 18) fazem a concordância não com os substantivos próprios masculinos e sim com a ideia que eles representam; logo, em relação à concordância nominal, há concordância ideológica.
( ) No período “Acho que eu teria ido de qualquer jeito” (linha 11) se a expressão destacada for substituída por mesmo assim, a coerência e o sentido, no texto, são mantidos.
( ) A protagonista registra a história da sua perambulação em um velho caderno com a imagem da boneca Barbie estampada na capa, e é com esta imagem inanimada – que está ali sempre disposta a escutar, que não fala, não interrompe, não aconselha e, principalmente, não perturba e nem é censurável – que Alice dialoga para dividir suas aflições.
( ) A leitura da obra leva o leitor a inferir que a arte da produção escrita da personagem/narradora é um subterfúgio que ela encontra para abrandar a solidão e não sufocar com as memórias e inquietações; dar sentido ao vivido, de passar toda a angústia convivida para uma plano que a absorva.
Assinale a alternativa que contém a sequência correta, de cima para baixo.
F – V – V – V – V
V – V – V – V – V
V – F – V – V – V
F – F – F – V – F
F – V – F – V – F