Tarde Cinzenta
A tarde de inverno é perfeita. O tempo nublado
acinzenta tudo. Mesmo os mais empedernidos cultores
da agitação, do barulho, das cores, hoje se
rendem a uma certa passividade e melancolia. Os
espíritos ensimesmados reinam; os ativos pagam tributo
à reflexão. Sem o sol, que provoca a rudeza dos
contrastes, tudo é sutil, tudo é suave.
Tardes assim nos reconciliam com o efêmero.
Longe das certezas substanciais, ficamos flutuando
entre as névoas da dúvida. A superficialidade, que
aparentemente plenifica, dissolve-se; acabamos ancorados
no porto das insatisfações. E, ao invés de
nos perenizarmos como singularidade, desejamos
subsumir na névoa...como a montanha e a tarde.
A vida sempre para numa tarde assim. É como
se tudo congelasse. Moléculas, músculos, máquinas
e espíritos interrompem seu furor produtivo e se rendem,
estáticos, à magia da tarde cinzenta.
Numa tarde assim, não há senão uma coisa a
fazer: contemplar. O espírito, carregando consigo um
corpo por vezes contrariado, aquieta-se e divaga; torna-
se receptivo a tudo: aos mínimos sons, às réstias
de luz que atravessam a névoa, ao lento e pesado
progresso que tudo conduz para o fim do dia, para o
mergulho nas brumas da noite. As narinas absorvem
com prazer um odor que parece carregado de umidade;
a pele sente o toque enérgico do frio. O langor
impõe-se e comanda esse estar-no-mundo como que
suspenso por um tênue fio que nos liga, timidamente,
à vida ativa.
Nas tardes cinzentas, o coração balança entre
a paz e a inquietação, porque a calma e o silêncio
inquietam. O azáfama anestesia; o não fazer deixa o
espírito alerta — como um nervo exposto a qualquer
acontecer.
Não há jamais nada de espetacular nas tardes
cinzentas, a não ser o espetáculo da própria tarde. E
este é grandiosamente simples: ar friorento, claridade
difusa que se perde no cinza, contemplação, inatividade
e o contraditório do espírito aguçado e acuado
por esse acontecer minimalista da vida.
Na tarde fria e cinzenta, corpos se rendem ao
aconchego de roupas macias ou de braços macios
em abraços suaves. Somente olhares e corações
conservam o fogo das paixões. As vozes agudas e
imperativas transformam-se em sons baixos, quase
guturais, que muitas vezes convertem-se em sussurros,
como temendo quebrar a magia da tarde.
Não nos iludamos com as aparências: não há
necessariamente tristeza nas tardes cinzentas. Mas
também não existe aquela alegria inconsequente
dos dias cálidos e dourados pelo sol. Existe, sim, um
equilíbrio perfeito, numa equidistância entre o tédio
e a euforia, fazendo-nos caminhar sobre um tênue
fio distendido entre o amargor e a satisfação, entre o
entusiasmo e o tédio. Tudo isso, porém, só se mostra
aqui e ali, em meio à bruma difusa, ao cinza que
permeia tudo.
Uma simples tarde cinzenta pode parar o mundo,
pode deter a vida. Somente por um instante. Mas
talvez apenas nos corações sensíveis.
CARINO, J. Disponível em: http://www.almacarioca.net/tarde-cinzenta-j-carino/ Acesso em: 23 ago. 2010. (Adaptado)
Considere as afirmativas abaixo, segundo o registro culto e formal da língua.
I – O uso do acento grave indicativo da crase em “às réstias de luz que atravessam a névoa,” (l. 22-23), constitui caso de regência nominal.
II – Em “As narinas absorvem com prazer um odor...” (l. 25-26), substituindo-se o verbo destacado por aspirar, teríamos as narinas aspiram com prazer a um odor.
III – Acrescentando-se à expressão destacada em “...que nos liga, timidamente, à vida ativa.” (l. 29-30) o pronome minha (à minha vida ativa), o uso do acento grave indicativo da crase passa a ser facultativo.
Está correto o que se afirma em
I, apenas.
I e II, apenas.
I e III, apenas.
II e III, apenas.
I, II e III.