Sobre Auto da barca do inferno, de Gil Vicente, é correto afirmar que:
A obra cativa pelo lirismo, ao mesmo tempo em que intriga pela estrutura caprichosamente montada, dando ensejo a uma abordagem doutrinal que incorpora, ao lado dos elementos poéticos, comédia, drama de costumes e bucolismo.
A transposição de um plano a outro – do político ao litúrgico – é perfeitamente adequada à peça, e toda a discussão acerca da figura do Anjo aponta, então, para seu caráter religioso, seu papel de representante de Deus na Terra.
O tema do juízo final é exposto já no monólogo inicial da peça, definindo com clareza a aversão à morte – em tom de comédia ligeira – por parte de todos os personagens, à exceção do Judeu.
Como em toda alegoria, o tema tratado em tom solene – a vida em sua dimensão profana e religiosa – logo é reinterpretado no estilo das comédias de costumes, à luz das experiências mais prosaicas.
A qualidade essencial da arte vicentina – o lirismo – falta completamente nessa obra. A peça vale pela palpitante atualidade com que o autor passou em revista a sociedade de seu tempo, espectadora da própria representação, e advertida dos pecados que a privam da salvação eterna.