Reconheceu logo o filho mais velho do seu primitivo senhor, e um calafrio percorreu-lhe o corpo. Num relance de grande perigo compreendeu a situação: adivinhou tudo com a lucidez de quem se vê perdido para sempre. Adivinhou que tinha sido enganada; que a sua carta de alforria era uma mentira, e que o seu amante, não tendo coragem para matá-la, restituía-a ao cativeiro.
Seu primeiro impulso foi de fugir. Mal, porém, circunvagou os olhos em torno de si, procurando escapula, o senhor adiantou-se dela e segurou-lhe o ombro.
- É esta! Disse aos soldados que, com um gesto, intimaram a desgraçada a segui-los.
- Prendam-na! É escrava minha!
A negra, imóvel, cercada de escamas e tripas de peixe, com uma das mãos espalmada no chão e com a outra segurando a faca de cozinha, olhou aterrada para eles, sem pestanejar.
Os policiais, vendo que ela se não despachava, desembainharam os sabres. Bertoleza, então, erguendo-se com ímpeto de anta bravia, recuou de um salto e, antes que alguém conseguisse alcançá-la, já de um só golpe certeiro e fundo, rasgara o ventre de lado a lado.
E depois emborcou para a frente, rugindo e esfocinhando moribunda numa lameira de sangue.
João Romão fugira até o canto mais escuro do armazém, tapando o rosto com as mãos.
(AZEVEDO, Aluísio. O Cortiço. Cap.XXXIII, pp.164-5. Rio de Janeiro: Ediouro s.d.)
O fragmento que representa a zoomorfização, característica da narrativa realista, é:
“Seu primeiro impulso foi de fugir. Mal, porém, circunvagou os olhos em torno de si, ...”
“A negra, imóvel, cercada de escamas e tripas de peixe, com uma das mãos espalmada no chão e com a outra segurando a faca de cozinha...”
“E depois emborcou para a frente, rugindo e esfocinhando moribunda numa lameira de sangue.”
“Adivinhou que tinha sido enganada; que a sua carta de alforria era uma mentira,...”
“Disse aos soldados que, com um gesto, intimaram a desgraçada a segui-los.”