Quando os jornais anunciaram para o dia 1o deste mês uma parede de açougueiros, a sensação que tive foi mui diversa da de todos os meus concidadãos. Vós ficastes aterrados; eu agradeci ao céu. Boa ocasião para converter esta cidade ao vegetarismo. Não sei se sabem que eu era carnívoro por educação e vegetariano por princípio. Criaram-me a carne, mais carne, ainda carne, sempre carne. Quando cheguei ao uso da razão e organizei o meu código de princípios, incluí nele o vegetarismo; mas era tarde para a execução. Fiquei carnívoro. Era a sorte humana; foi a minha. Certo, a arte disfarça a hediondez¹ da matéria. O cozinheiro corrige o talho. Pelo que respeita ao boi, a ausência do vulto inteiro faz esquecer que a gente come um pedaço do animal. Não importa, o homem é carnívoro.
Deus, ao contrário, é vegetariano. Para mim a questão do paraíso terrestre explica-se clara e singelamente pelo vegetarismo. Deus criou o homem para os vegetais, e os vegetais para o homem; fez o paraíso cheio de amores e frutos, e pôs o homem nele.
(Machado de Assis)
¹hediondez: qualidade do que é repelente, repulsivo, horrendo.
A frase: “A arte disfarça a hediondez da matéria” significa que:
sem a arte do cozinheiro, seria muito chocante comer o animal todo de uma vez.
a obra de arte é um novo olhar sobre a realidade o qual aponta para os aspectos repulsivos desta.
a perícia do cozinheiro, por princípio, ajuda ao homem ser carnívoro.
o papel da arte acaba sendo o de mascarar certos aspectos repugnantes da realidade.
o cozinheiro maquia a carne do boi, para não chocar o consumidor carnívoro.