Poética
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de
ponto expediente protocolo e
manifestações de apreço ao sr. diretor.
Estou farto do lirismo que para e vai averiguar
no dicionário o cunho vernáculo
de um vocábulo
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos
universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes
de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer
que seja fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de cossenos
secretário do amante exemplar com cem
modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres, etc
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbados
O lirismo dos clowns de Shakespeare
— Não quero mais saber do lirismo que não
é libertação.
(Manuel Bandeira, in: Libertinagem)
A repetição de palavras no início do verso (“Estou farto”, “Todas”, “O lirismo”) e a omissão de termos subentendidos do verso anterior (“Político”) caracterizam respectivamente:
anáfora e zeugma.
hipérbole e hipérbato.
catacrese e antonomásia.
epístrofe e elipse.
anacoluto e perífrase.