POEMA EM LINHA RETA
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar
banho,
Eu que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das
etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo
ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado
sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,
Para fora da possibilidade do soco;
Eu que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas
ridículas,
Eu que verifico que não tenho par nisto neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo,
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu um enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
(...)
(in: “Poemas”, Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa)
Assinale a afirmação que não condiz:
Poema desabafo em que o “eu” poético alude ironicamente ao fato de que só ele confessa seus “delitos”.
Há uma oposição inicial entre o poeta, associado a qualidades negativas, e os campeões, associados a virtudes.
A metáfora do “soco” é uma referência à própria falta de coragem, à própria covardia.
Depreende-se do poema que o que vigora na sociedade é a hipocrisia, e que o “eu” poético é julgado e marginalizado em função disso.
Devido a sua “sujeira”, o “eu” poético se sente um plebeu ante o caráter principesco dos outros.