Poema de sete faces
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai Carlos! Ser gauche na vida.
As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.
Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é o meu coração.
Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.
(ANDRADE, Carlos Drummond de. In Nova Reunião - 19 Livros de Poesia / Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro. Ed. José Olímpio, 1983. p.3-4.)
“Poema de Sete Faces” abre o livro “Alguma Poesia” (1932), o primeiro publicado por Carlos Drummond de Andrade (1902/1987). A ele segue “Brejo das Almas”(1934). As duas obras constituem a primeira fase da trajetória poética do autor, a que se chamou poesia irônica (ou gauchismo).
A seguir, colocam-se textos dessa fase, cabendo a você assinalar a alternativa em que não há perfeita correspondência entre eles e os comentários feitos.
“No azul do céu de metileno / a lua irônica / diurética/ é uma gravura de sala de jantar.”
- O cenário artificial apresentado nesses versos mostra uma postura visivelmente antilírica de quem evita correr o risco da emoção.
“Stop./ A vida parou / ou foi o automóvel?”
- O poeta alude, de modo irônico, à desvalorização da vida, como se a morte de um indivíduo se equiparasse a um enguiço mecânico, fenômenos de mesma grandeza e natureza.
“Era uma vez um czar naturalista/ que caçava homens,/ quando lhe disseram que também se caçam borboletas e andorinhas,/ ficou muito espantado/ e achou uma barbaridade.”
- O poeta (o “Era uma vez” do verso inicial confirma essa afirmação) usa o texto para ressaltar a aparente ilogicidade e o absurdo de grande parte das narrativas para crianças.
“Casas entre bananeiras /mulheres entre laranjeiras/ pomar amor cantar. / Um homem vai devagar./ Um cachorro vai devagar./ Um burro vai devagar./ Devagar...as janelas olham.//Eta vida besta, meu Deus.”
- Através da ausência de vírgulas e repetição das mesmas estruturas sintáticas, o poeta consegue passar a impressão da estagnação, da monotonia que atinge a todos, pessoas e animais.
“No meio do caminho tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio do caminho/ tinha uma pedra/ no meio do caminho tinha uma pedra.// Nunca me esquecerei desse acontecimento/na vida de minhas retinas tãofatigadas./ Nunca me esquecerei que no meio do caminho/ tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio do caminho/ no meio do caminho tinha uma pedra.”
- Por detrás da aparente banalidade dos versos, revela-se uma situação de impasse, para o qual não há saída. As repetições parecem indicar, na verdade, que há vários “caminhos” e várias “pedras”.