Poema 1: [Não a Ti, Cristo] (Ricardo Reis)
Não a Ti, Cristo, odeio ou
menosprezo
Que aos outros deuses que
te precederam
Na memória dos homens.
Nem mais nem menos és,
mas outro deus.
No Panteão faltavas. Pois
que vieste
No Panteão o teu lugar
ocupa,
Mas cuida não procures
Usurpar o que aos outros é
devido.
[...]
Ah, aumentai, não
combatendo nunca.
Enriquecei o Olimpo, aos
deuses dando
Cada vez maior força
P'lo número maior.
Basta os males que o Fado
as Parcas fez
Por seu intuito natural
fazerem.
Nós homens nos façamos
Unidos pelos deuses.
Poema 2: X (Alberto Caeiro)
"Olá, guardador de
rebanhos,
Aí à beira da estrada,
Que te diz o vento que
passa?"
"Que é vento, e que passa,
E que já passou antes,
E que passará depois.
E a ti o que te diz?"
"Muita cousa mais do que
isso.
Fala-me de muitas outras
cousas.
De memórias e de saudades
E de cousas que nunca
foram."
"Nunca ouviste passar o
vento.
O vento só fala do vento.
O que lhe ouviste foi
mentira,
E a mentira está em ti."
Poema 3: Ode triunfal (Álvaro de Campos)
Notícias desmentidas dos
jornais,
Artigos políticos
insinceramente sinceros,
Notícias passez à-la-caisse,
grandes crimes -
Duas colunas deles
passando para a segunda
página!
O cheiro fresco a tinta de
tipografia!
Os cartazes postos há
pouco, molhados!
Vients-de-paraître
amarelos como uma cinta
branca!
Como eu vos amo a todos,
a todos, a todos,
Como eu vos amo de todas
as maneiras,
Com os olhos e com os
ouvidos e com o olfacto
Eu podia morrer triturado
por um motor
Com o sentimento de
deliciosa entrega duma
mulher possuída.
Atirem-me para dentro das
fornalhas!
Metam-me debaixo dos
comboios!
Espanquem-me a bordo de
navios!
Masoquismo através de
maquinismos!
Sadismo de não sei quê
moderno e eu e barulho!
[...]
(Ser tão alto que não
pudesse entrar por
nenhuma porta!
Ah, olhar é em mim uma
perversão sexual!)
E com o tacto (o que
palpar-vos representa para
mim!)
E com a inteligência como
uma antena que fazeis
vibrar!
Ah, como todos os meus
sentidos têm cio de vós!
[...]
Ainda sobre os três poemas de Fernando Pessoa, é possível afirmar que:
no poema de Ricardo Reis, o paganismo se mostra na tentativa de negar a Cristo a divindade que, contrariamente, atribui aos deuses antigos.
no poema de Alberto Caeiro, há uma exigência, comum em vários poemas do heterônimo, de ver na natureza sentidos metafóricos além do que ela tem de fato.
no poema de Álvaro de Campos, os versos, feitos de imagens da vida moderna, exemplificam sua filiação aos movimentos modernistas europeus.
os três poemas exemplificam o desprezo do modernista Fernando Pessoa aos temas tradicionais da cultura clássica.
a ausência de rimas e ritmos nos três poemas, uma constante em Ficções do Interlúdio, são sinais da influência de Alberto Caeiro sobre os demais heterônimos.