Passaram-se semanas. Jerônimo tomava agora,
todas as manhãs, uma xícara de café bem grosso, à
moda da Ritinha, e tragava dois dedos de parati “pra
cortar a friagem”.
[5] Uma transformação, lenta e profunda, operava-se
nele, dia a dia, hora a hora, reviscerando-lhe o corpo e
alando-lhe os sentidos, num trabalho misterioso e surdo
de crisálida. A sua energia afrouxava lentamente: fazia-
se contemplativo e amoroso. A vida americana e a
[10] natureza do Brasil patenteavam-lhe agora aspectos
imprevistos e sedutores que o comoviam; esquecia-se
dos seus primitivos sonhos de ambição, para idealizar
felicidades novas, picantes e violentas; tornava-se
liberal, imprevidente e franco, mais amigo de gastar que
[15] de guardar; adquiria desejos, tomava gosto aos
prazeres, e volvia-se preguiçoso, resignando-se,
vencido, às imposições do sol e do calor, muralha de
fogo com que o espírito eternamente revoltado do último
tamoio entrincheirou a pátria contra os conquistadores
[20] aventureiros.
E assim, pouco a pouco, se foram reformando todos
os seus hábitos singelos de aldeão português: e
Jerônimo abrasileirou-se. (...)
E o curioso é que, quanto mais ia ele caindo nos
[25] usos e costumes brasileiros, tanto mais os seus
sentidos se apuravam, posto que em detrimento das
suas forças físicas. Tinha agora o ouvido menos
grosseiro para a música, compreendia até as intenções
poéticas dos sertanejos, quando cantam à viola os seus
[30] amores infelizes; seus olhos, dantes só voltados para a
esperança de tornar à terra, agora, como os olhos de
um marujo, que se habituaram aos largos horizontes de
céu e mar, já se não revoltavam com a turbulenta luz,
selvagem e alegre, do Brasil, e abriam-se amplamente
[35] defronte dos maravilhosos despenhadeiros ilimitados e
das cordilheiras sem fim, donde, de espaço a espaço,
surge um monarca gigante, que o sol veste de ouro e
ricas pedrarias refulgentes e as nuvens toucam de alvos
turbantes de cambraia, num luxo oriental de arábicos
[40] príncipes voluptuosos.
Aluísio Azevedo, O cortiço.
Considere as seguintes afirmações, relacionadas ao excerto de O cortiço:
I. O sol, que, no texto, se associa fortemente ao Brasil e à “pátria”, é um símbolo que percorre o livro como manifestação da natureza tropical e, em certas passagens, representa o princípio masculino da fertilidade.
II. A visão do Brasil expressa no texto manifesta a ambiguidade do intelectual brasileiro da época em que a obra foi escrita, o qual acatava e rejeitava a sua terra, dela se orgulhava e envergonhava, nela confiava e dela desesperava.
III. O narrador aceita a visão exótico-romântica de uma natureza (brasileira) poderosa e transformadora, reinterpretando-a em chave naturalista.
Aplica-se ao texto o que se afirma em
I, somente.
II, somente.
II e III, somente.
I e III, somente.
I, II e III.