Os usos da casimira inglesa
Estou lhe escrevendo, Matilda, para lhe transmitir aquilo que a contrariedade (para não falar
indignação) me impediu de dizer de viva voz. Note, é a primeira vez que isso acontece nos
nossos 35 anos de casados, mas é primeira vez que pode também ser a última. Não é ameaça.
É constatação. Estou profundamente magoado com sua atitude e não sei se me recuperarei.
[5] Tudo por causa de sua teimosia. Você insiste, contra todas as minhas ponderações, em dar a
seu pai um corte de casimira inglesa como presente de aniversário. Eu já sei o que você vai me
dizer: é seu pai, você gosta dele, quer homenageá-lo. Mas, com casimira, Matilda. Com casimira
inglesa, Matilda. Que horror, Matilda.
Raciocinemos, Matilda. Casimira inglesa, você sabe o que é isso? A lã dos melhores ovinos,
[10] Matilda. A tecnologia de um país que, afinal, deu ao mundo a Revolução Industrial. O trabalho
de competentes funcionários. E sobretudo tradição, a qualidade. Esse é o tecido que está em
questão, Matilda. A casimira inglesa.
(...)
Isso, a casimira inglesa. Agora, seu pai.
Ele está fazendo noventa anos. É uma idade respeitável, e não são muitos que chegam lá,
[15] mas − quanto tempo ele pode ainda viver? (...) mesmo que ele viva dez anos, mesmo que ele
viva vinte anos, a casimira sem dúvida durará mais. Aí, depois que o sepultarmos, depois que
voltarmos do cemitério, depois que recebermos os pêsames dos parentes, e dos amigos, e dos
conhecidos, teremos de decidir o que fazer com as coisas dele, que são poucas e sem valor
− à exceção de um casaco confeccionado com o corte de casimira que você pretende lhe dar.
[20] Você, em lágrimas, dirá que não quer discutir o assunto, mas eu terei que insistir, até para o seu
bem, Matilda; os mortos estão mortos, os vivos precisam continuar a viver, eu direi. Algumas
hipóteses serão levantadas. Vender? Você dirá que não; seu pai, o velho fazendeiro, verdade
que arruinado, despreza coisas como comprar e vender, ele acha que ser lojista, como eu, é
a suprema degradação. Dar? A quem? A um pobre? Mas não, ele sempre detestou pobres,
[25] Matilda, você lembra a frase característica de seu pai: tem que matar esses vagabundos. O
casaco ficaria pendurado em nosso roupeiro, Matilda. Ficaria pendurado muito tempo lá. A não
ser, Matilda, que seu pai dure mais tempo que o casaco. Não apenas isso é impossível, como
remete a uma outra interrogação: e o seguro de vida dele, Matilda? E as joias de sua mãe, que
ele guarda debaixo do colchão? Quanto tempo ainda terei de esperar?
[30] Estou partindo Matilda. Deixo o meu endereço. Como você vê, estou indo para longe, para uma
pequena praia da Bahia. Trópico, Matilda. Lá ninguém usa casimira.
Moacyr Scliar Contos reunidos . São Paulo: Cia. das Letras, 995.
Ele está fazendo noventa anos. É uma idade respeitável, e não são muitos que chegam lá, mas − quanto tempo ele pode ainda viver? (l. 14-15)
No contexto, a pergunta feita pelo narrador está diretamente ligada à informação acerca da idade do pai de Matilda.
No entanto, entre a informação e a pergunta, o narrador enuncia duas ponderações que possuem a função de:
desfazer a certeza de que a fala é impensada
amenizar o choque que a indagação pode trazer
reiterar a ideia de que o presente é equivocado
enfatizar o realismo que o remetente quer mostrar