Observe o fragmento abaixo retirado do conto Tentação, de Felicidade Clandestina, de ClariceLispector:
Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das duas horas, ela era ruiva.(...) Que fazer de uma menina ruiva com soluço? Olhamo-nos sem palavras, desalento contra desalento. Na rua deserta nenhum sinal de bonde. Numa terra de morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária. Que importava se num dia futuro sua marca ia fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher? Por enquanto ela estava sentada num degrau faiscante da porta, às duas horas. O que a salvava era uma bolsa velha de senhora, com alça partida. Segurava-a com um amor conjugal já habituado, apertando-a contra os joelhos.
Foi quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão em Grajaú. A possibilidade de comunicação surgiu no ângulo quente da esquina acompanhando uma senhora, e encarnada na figura de um cão. Era um basset lindo e miserável, doce sob a sua fatalidade. Era um basset ruivo (...).
Fonte: LISPECTOR, Clarice. Felicidade Clandestina, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987, p. 123.
Aponte a afirmativa INCORRETA sobre esse fragmento e sobre o livro de Clarice Lispector:
Tentação é um dos vários contos de Felicidade Clandestina em que se narra uma experiência impactante de aprendizado vivida por uma menina. Assim como as personagens narradoras dos contos Felicidade Clandestina e Os Desastres de Sofia, a menina ruiva do conto citado procura, com algum incômodo, conhecer-se no contato com o mundo, com os outros e com seus limites.
O conto metaforiza o desacerto da menina ruiva em relação ao mundo nos sinais do seu desconforto: o soluço e a brancura da pele, num dia de intenso calor, “numa terra de morenos”. A felicidade do encontro do basset ruivo aponta para a urgência de identificação com outro alguém no mundo, o que lhe traria a sensação de ser menos “estrangeira” e frágil na percepção de suas diferenças em relação aos demais de seu meio.
O conto sugere o desconforto da própria infância, uma etapa do crescimento individual geralmente associada a vivências felizes. A menina parece mal ajustada a sua idade e às experiência próprias dela, “adiantando” ou antevendo, por seus modos e adereços (uma bolsa velha de senhora com alça partida), um crescimento que lhe dê uma suposta segurança no futuro (Que importava se num dia futuro sua marca ia fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher?).
A frase “Era um basset lindo e miserável, doce sob a sua fatalidade” é um exemplo típico da escrita de Clarice Lispector, carregada de densidade poética. A frase contém uma dose de antítese ao conferir atributos contrastantes (beleza e miséria, doçura e fatalidade) para o cão. Essas forças contrárias intuídas pela menina no que percebe no cachorro têm a ver com a situação contraditória que ela mesma vive ao descobri-lo: ele é o ser com quem ela mais se identificou entre todos os que já vira até então. Porém, o cão não poderá acompanhá-la, porque já tem dona. Seu aprendizado será o de tentar conformar-se com o impossível desse contato, apesar da atração.
O conto narra, de modo realista, uma história de opressão social e preconceito, vencida pela menina ao final. Da situação inicial, de criança abandonada (sentada num degrau faiscante da porta), a protagonista passará à redenção sinalizada pela chegada do cachorro com sua dona, a qual, numa atitude generosa, oferecerá abrigo à menina ruiva.