Observe a seguinte passagem do conto Tentação, do livro Felicidade Clandestina, de Clarice Lispector:
“Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das duas horas, ela era ruiva. Na rua vazia as pedras vibravam de calor – a cabeça da menina flamejava. (...) Que fazer de uma menina ruiva com soluço? (...) Numa terra de morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária. (...) Foi quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão em Grajaú. A possibilidade de comunicação surgiu no ângulo quente da esquina acompanhando uma senhora, e encarnada na figura de um cão. Era um basset lindo e miserável, doce sob a sua fatalidade. Era um basset ruivo. Lá vinha ele trotando, à frente da sua dona, arrastando o seu comprimento. Desprevenido, acostumado, cachorro. A menina abriu os olhos pasmados. Suavemente avisado, o cachorro estacou diante dela. Sua língua vibrava. Ambos se olhavam. Entre tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de outro ser, lá estava a menina que viera ao mundo para ter aquele cachorro. (...) Os pelos de ambos eram curtos, vermelhos”.
(LISPECTOR, Clarice. Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998).
I. A cena citada, pelo realismo da descrição, se assemelha ao que se vê em Vidas Secas, de Graciliano Ramos, no que se refere à identificação dos filhos de Fabiano com a cachorra Baleia. De fato, a menina do conto de Clarice Lispector vê em si características parecidas com as do basset ruivo porque, devido à sua pobreza, sente-se destituída da dignidade humana.
II. Um dos aspectos mais destacados no conto é a sensação inicial de desconforto da menina protagonista por não encontrar identificação com outros ao seu redor. Isso faz pensar nas temáticas da solidão ontológica e da “experiência” do estrangeiro, recorrentes nas reflexões da ficção da autora.
III. A menina do conto “Tentação” sente-se atraída pela transgressão, que vem de sua condição de desajustada, carente da companhia e da referência de familiares. O fascínio que o cachorro lhe provoca a leva a pensar em possuí-lo, a fim de aplacar a solidão que sente. Há de sua parte a intenção inicial de roubo do cão, logo repensada e abandonada devido a um súbito sentimento de culpa, que torna o final da narrativa melancólico.
IV. A condição da menina diante do cachorro é alvo de uma densa análise feita pelo narrador. É comum na ficção de Clarice Lispector a indagação das motivações dos personagens, bem como os conflitos que perpassam as tomadas de decisão. A menina do conto, depois da experiência inicial de incômodo provocado pela “diferença” (real ou meramente percebida por ela), sente-se feliz por saber que há “outros” iguais a ela no mundo. Contudo, embora deseje, ela sabe que não poderá ficar com o cachorro. Trata-se de outro aprendizado: o das impossibilidades com que devemos aprender a conviver.
Estão CORRETAS as afirmativas:
Apenas I e III.
Apenas I
Apenas II e IV.
Apenas a III.
I, II, III e IV.