O voo negro dos urubus fazia círculos altos em redor
de bichos moribundos.
— Anda, excomungado.
O pirralho não se mexeu, e Fabiano desejou
5 matá-lo. Tinha o coração grosso, queria responsabilizar
alguém pela sua desgraça. A seca aparecia-lhe como
um fato necessário — e a obstinação da criança irritava-o.
Certamente esse obstáculo miúdo não era culpado, mas
dificultava a marcha, e o vaqueiro precisava chegar, não
10 sabia onde. Tinham deixado os caminhos, cheios de
espinho e seixos, fazia horas que pisavam a margem do
rio, a lama seca e rachada que escaldava os pés.
Pelo espírito atribulado do sertanejo passou a ideia
de abandonar o filho naquele descampado. Pensou nos
15 urubus, nas ossadas, coçou a barba ruiva e suja,
irresoluto, examinou os arredores. Sinha Vitória esticou
o beiço indicando vagamente uma direção e afirmou com
alguns sons guturais que estavam perto. Fabiano meteu
a faca na bainha, guardou-a no cinturão, acocorou-se,
20 pegou o pulso do menino que se encolhia, os joelhos
encostados no estômago, frio como um defunto. Aí a
cólera desapareceu e Fabiano teve pena. Impossível
abandonar o anjinho aos bichos do mato. Entregou a
espingarda a sinha Vitória, pôs o filho no cangote,
25 levantou-se, agarrou os bracinhos que lhe caíam no peito,
finos como cambitos. Sinha Vitória aprovou esse arranjo,
lançou de novo a interjeição gutural designou os juazeiros
invisíveis.
RAMOS, Graciliano. Mudança. Vidas Secas. 65. ed. São Paulo: Record, 1994. p. 10.
O emprego de uma metáfora fica evidente no fragmento transcrito em
“— Anda, excomungado.” (l. 3).
“Sinha Vitória esticou o beiço” (l. 16-17).
“Fabiano meteu a faca na bainha” (l. 18-19).
“Impossível abandonar o anjinho aos bichos do mato.” (l. 22-23).
“agarrou os bracinhos que lhe caíam no peito, finos como cambitos.” (l. 25-26).