O que nos torna pouco competitivos?
Renato Rozental
Lamentar a morte de mais de meio milhão de brasileiros por covid-19 é pouco. Esta é uma discussão de resposta muito clara,
quase óbvia. Se tivéssemos capacidade interna, poderíamos ter suprido parte das necessidades do mercado e reduzido o
impacto da pandemia no sistema de saúde em tempo hábil. O quadro de calamidade é resultado de décadas de políticas de
incentivo ___ mera reprodução em vez de estímulo ___ capacitação profissional e ao domínio do processo produtivo.
[5] Começar reproduzindo (‘copiando’) não é um problema. Basta lembrar da história do nylon, fibra têxtil sintética patenteada
pela empresa norte-americana DuPont em 1935 e usada para provocar a indústria japonesa e fazê-la exportar menos seda. A
resposta japonesa foi contundente e imediata: ‘copiar’ o processo de manufatura e produzir nylon 6 meses após a desfeita.
Atualmente, a China domina o mercado mundial de nylon, seguida por Estados Unidos, Japão e Tigres Asiáticos. Os chineses
perceberam que, na era tecnológica, “o caminho mais curto para crescer é apostar em três frentes: inovação, inovação e
[10] inovação”.
Nesse contexto, pergunto: qual é o perfil da nossa indústria farmacêutica? Produzimos genéricos… até hoje. Mas a política
de ‘genéricos’ tem como fragilidade o fato de incluir apenas medicamentos cujas patentes já tenham expirado. O problema do
conhecimento tecnológico insuficiente e a dificuldade do nosso país em evoluir de ‘copiar’ para ‘inovar’ precisa ser tratado com
prioridade e sem demagogia para romper o ciclo vicioso da dependência tecnológica e trazer um diferencial competitivo.
[15] O projeto de cranioplastia, reparo craniano extenso, pode ilustrar tanto a inovação estimulada pela demanda como os
entraves burocráticos ao desenvolvimento do produto. Pelo lado clínico, ___ cirurgias de reconstrução do crânio após remoção
da calota craniana envolvem um alto custo, incluindo a malha de titânio e porcelanato usada atualmente, totalizando um gasto
entre R\$ 120 mil e R\$ 200 mil por paciente, o que torna sua realização no Sistema Único de Saúde (SUS) economicamente
inviável. A cranioplastia faz-se necessária não somente por razões estéticas – o que, por si só, já justificaria o procedimento –,
[20] mas também para assegurar que o cérebro do paciente fique mais protegido e com melhor irrigação sanguínea, resultando em
melhoras cognitivas e comportamentais e facilitando ___ reintrodução do indivíduo na sociedade. No momento, infelizmente, a
implantação de próteses cranianas é realizada pelo SUS somente mediante doação ou após sentença judicial, considerando
que o paciente corre risco de vida.
Nossa equipe desenvolveu uma solução utilizando uma prótese de polimetilmetacrilato (PMMA) confeccionada durante o
[25] período da cirurgia, com resultados semelhantes e até superiores aos das próteses de titânio e porcelanato disponíveis, mas
com custo cerca de 20 vezes menor que o praticado no mercado, tornando o tratamento, em teoria, viável e acessível à rede
SUS. Estamos confiantes nos resultados das próteses feitas de PMMA, na análise dos custos e na adequabilidade do produto
para o mercado.
A ciência translacional não é algo que possa se embutir no sistema por decreto. Grandes organizações, públicas e privadas,
[30] estão amarradas nas suas próprias burocracias, o que dificulta o processo criativo e de inovação. No contexto da inovação em
saúde, precisamos inserir formas de gestão flexíveis, ágeis, que envolvam tomadas de decisão descentralizadas, permitindo a
responsabilização de todos os atores envolvidos, de modo a ampliar os espaços de criatividade e de ousadia na busca e na
implementação de soluções. O que não dá para aceitar é continuar ___ andar com o ‘freio de mão puxado’ e na contramão do
desenvolvimento sustentável.
[35] Por fim, a dicotomia entre público e privado já deveria ter sido ultrapassada. A saúde é direito de todos e dever do Estado.
Quem trabalha com inovação quer ver o produto funcionando no mercado global. Certa vez, em 1995, tive a oportunidade de
ouvir de Eric Kandel (Universidade Columbia), Rodolfo Llinás (Universidade de Nova York) e Torsten Wiesel (Universidade
Rockfeller) uma previsão sobre o cenário de concessões nos Institutos Nacionais da Saúde (NIH) em 2015-2020: “quem não
desenvolvesse uma ‘pílula’ para a sociedade como resultado do seu projeto de pesquisa estaria fora do pool”. Tal visão está se
[40] tornando uma realidade global. Pessoalmente, acredito que um dos compromissos mais preciosos que temos com a nossa
população é o de proporcionar hoje, e não amanhã, uma solução para que todos possam ser atendidos a tempo e desfrutem
de boa qualidade de vida.
(ROZENTAL, Renato.O que nos torna pouco competitivos? [Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde. Fundação Oswaldo Cruz e Instituto de Ciências Biomédicas. Universidade Federal do Rio de Janeiro]. Matéria publicada em Ciência Hoje de 20 de agosto de 2021. Disponível em: https://cienciahoje.org.br/artigo/o-que-nos-torna-pouco-competitivos/. Acesso em 18 de setembro de 2021). Texto adaptado para esta prova.
Assinale a alternativa correta, considerando as relações de sentido construídas por meio dos articuladores sintáticosemânticos, no contexto em que foram empregados.
No período “Basta lembrar da história do nylon, fibra têxtil sintética patenteada pela empresa norte-americana DuPont em 1935 e usada para provocar a indústria japonesa e fazêla exportar menos seda.” (linhas 5 e 6), temos uma ideia de finalidade na sua última oração.
No período “A cranioplastia faz-se necessária não somente por razões estéticas – o que, por si só, já justificaria o procedimento –, mas também para assegurar que o cérebro do paciente fique mais protegido...” (linhas 19 e 20), o nexo “mas também” constrói uma relação de oposição, já que se tem a presença da conjunção adversativa “mas”, reforçada pelo advérbio “também”.
No período “Se tivéssemos capacidade interna, poderíamos ter suprido parte das necessidades do mercado e reduzido o impacto da pandemia no sistema de saúde em tempo hábil.” (linhas 2 e 3), o nexo “se” constrói uma relação de hipótese em relação ao que teria acontecido com a vida das pessoas.
No período “No momento, infelizmente, a implantação de próteses cranianas é realizada pelo SUS somente mediante doação ou após sentença judicial, considerando que o paciente corre risco de vida.” (linhas 21 a 23), o nexo “ou” traz uma ideia de inclusão, evidenciando as duas condições que devem ser satisfeitas para a implantação de próteses cranianas.
No período “Por fim, a dicotomia entre público e privado já deveria ter sido ultrapassada.” (linha 35), o nexo “por fim” constrói uma ideia de consequência final decorrente do fato de o problema da saúde ser dever do estado.