O cão sem plumas
João Cabral de Melo Neto
A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada.
O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão,
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.
Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.
Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.
Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos polvos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.
[...]
Como o rio
aqueles homens
são como cães sem plumas
(um cão sem plumas
é mais
que um cão saqueado;
é mais
que um cão assassinado.
[...]
Na paisagem do rio
difícil é saber
onde começa o rio;
onde a lama
começa do rio;
onde a terra
começa da lama;
onde o homem,
onde a pele
começa da lama;
onde começa o homem
naquele homem.
O poema “O cão sem plumas” se constrói em duas instâncias: a da geografia física, com a descrição objetiva do rio; e a da geografia humana, que ressalta as condições sociais do homem que habita suas margens. O trecho do poema que melhor representa essa afirmação é:
A cidade é passada pelo rio/ como uma rua/ é passada por um cachorro.
O rio ora lembrava /a língua mansa de um cão, /ora o ventre triste de um cão.
Aquele rio/era como um cão sem plumas. /Nada sabia da chuva azul.
Como o rio /aqueles homens /são como cães sem plumas.
Sabia dos caranguejos / de lodo e ferrugem. / Sabia da lama / como de uma mucosa.