Texto para as questões de 1 a 10.
A Pata da Gazela
1 Horácio de Almeida, o nosso leão, voltou a casa à hora do costume, quatro da tarde.
Os sucessivos encontros da Rua do Ouvidor; a conversa no Bernardo; a visita indispensável ao alfaiate; as anedotas
do Alcazar na noite antecedente; a crônica anacreôntica do Rio de Janeiro, chistosamente comentada; algumas rajadas de
maledicência, que é a pimenta social; todas essas ocupações importantes, que absorvem a vida do leão, distraíram Horácio
5 -a ponto de se esquecer ele do objeto guardado no bolso do paletó.
Como admitir que um príncipe da moda não aproveitasse a aventura do carro, para sobre ela bordar um romance
de rua, com que excitasse a curiosidade dos amigos? Realmente é admirável; e seria incompreensível se não fosse a
circunstância de ter poucos passos adiante encontrado uma das mais ricas herdeiras do Brasil, a quem o nosso leão
arrastava... ia dizer a asa, mas isso seria anacronismo; dizia-se no tempo em que os leões se chamavam galos; hoje deve
10 -dizer-se arrastar a juba; é mais bonito e indica mais submissão. Arrastar a asa é enfunar-se; arrastar a juba é prostrar-se.
Foi só quando, recostado em sua otomana, descansava para o jantar, que Horácio, procurando a carteira de charutos
no bolso do fraque, lembrou-se do objeto. Teve então curiosidade de examiná-lo; sabia o que era; na ocasião de
-apanhá-lo reconhecera o pé de uma botina de senhora; mas não fizera grande reparo.
Agora, porém, que de novo o tinha diante dos olhos, a sós em seu aposento e despreocupado da ideia de o restituir,
15 --Horácio achou o objeto digno de séria atenção; e, aproximando-se da janela, começou um exame consciencioso.
Era uma botina, já o sabemos; mas que botina! Um primor de pelica e seda, a concha mimosa de uma pérola, faceira
irmã do lindo chapim de ouro da borralheira; em uma palavra a botina desabrochada em flor, sob a inspiração de algum
artista ignoto, de algum poeta de ceiró e torquês.
Não era, porém, a perfeição da obra, nem mesmo a excessiva delicadeza da forma, o que seduzia o nosso leão;
20 --eram sobretudo os debuxos suaves, as ondulações voluptuosas que tinham deixado na pelica os contornos do pezinho
desconhecido. A botina fora servida, e muitas vezes; embora estivesse ainda bem conservada, o desmaio de sua primitiva
cor bronzeada e o esfolamento da sola indicavam bastante uso.
Se fosse um calçado em folha, saído da loja, não teria grande valor aos olhos do nosso leão, habituado não só
a ver, como a calçar, as obras-primas de Milliès e Campás. Talvez reparando muito naquela peça que tinha nas mãos,
25 -notasse maior elegância no corte e um apuro escrupuloso na execução; porém, mais natural seria escapar-lhe essa mínima
circunstância.
Mas a botina achada já não era um artigo de loja, e sim o traste mimoso de alguma beleza, o gentil companheiro
de uma moça formosa, de quem ainda guardava a impressão e o perfume. O rosto estufava mostrando o firme relevo do
pezinho arqueado. Na sola se desenhava a curva graciosa da planta sutil, que só nas extremidades beijava o chão, como o
30 -silfo que frisa a superfície do lago com a ponta das asas.
Há um aroma, que só tem uma flor na terra, o aroma da mulher bonita: fragrância voluptuosa que se exala ao mesmo
tempo do corpo e da alma; perfume inebriante que penetra no coração como o amor volatilizado. A botina estava impregnada
desse aroma delicioso; o delicado tubo de seda, que se elevava como a corola de um lírio, derramava, como a flor, ondas
suaves.
35 O mancebo colocara longe de si o charuto para não desvanecer com o fumo os bafejos daquele odor suave. Não
havia aí o menor laivo de essência artificial preparada pela arte do perfumista; era a pura exalação de uma cútis acetinada,
esse hálito de saúde que perspira através da fina e macia tez, e como através das pétalas de uma rosa.
De repente uma ideia perpassou no espírito do moço que o fez estremecer. Essa botina grácil, em que mal caberia
sua mão aristocrática, essa botina mais mimosa do que sua luva de pelica, não podia ter um número maior do que o de seus
40 - anos, vinte e nove!
“Será de uma menina!” murmurou ele um tanto desconsolado.
Examinou novamente a obra-prima, voltou-a de todos os lados, apalpou docemente o salto e o bico, dobrou a orla
da haste, sondou o interior da concha, que servira de regaço ao feiticeiro pezinho. Depois de alguns instantes deste exame
profundo e minucioso, um sorriso expandiu o semblante de Horácio.
45 “É de moça, é de mulher!” murmurou ele. “Aqui estão os sinais evidentes; não podem falhar. A fábula de Édipo é uma
verdade eterna: no enigma da esfinge está realmente o mito da vida. O homem é o animal que de manhã anda sobre quatro
pés; ao meio-dia sobre dois; à tarde sobre três. Na infância, a criatura, como a planta, conserva-se rasteira, brota, pulula,
mas aconchega-se mais ao solo, de que recebe toda a nutrição; as mãos servem-lhe de pés. Depois da juventude, na época
da expansão, a criatura se lança para o espaço, exalta-se: é a árvore que hasteia e procura as nuvens; a planta pede ao céu
50 --os orvalhos e a luz do sol; a alma pede a crença, a fé, a esperança, de que se geram as flores, que nós chamamos paixões.
Na velhice, o homem se inclina de novo para a terra, como o tronco carcomido; é o pó, que, depois de revoar no espaço,
deposita-se outra vez no chão. Então o velho precisa do bordão; uma das mãos torna-se pé e calça esse coturno da mais triste
das tragédias humanas, a decrepitude.”
ALENCAR, José de. A Pata da Gazela. Rio de Janeiro: Ática, 1995.
“Não era, porém, a perfeição da obra, nem mesmo a excessiva delicadeza da forma, o que seduzia o nosso leão; eram sobretudo os debuxos suaves, as ondulações voluptuosas que tinham deixado na pelica os contornos do pezinho desconhecido”.
Assinale a alternativa em que se tenha mantido correção gramatical ao se transformar o segmento destacado no período acima. Não leve em conta alterações de sentido.
Não seria, porém, a perfeição da obra, nem mesmo a excessiva delicadeza da forma, o que seduziria o nosso leão; seriam sobretudo os debuxos suaves, as ondulações voluptuosas que teriam deixado na pelica os contornos do pezinho desconhecido.
Não será, porém, a perfeição da obra, nem mesmo a excessiva delicadeza da forma, o que seduzira o nosso leão; serão sobretudo os debuxos suaves, as ondulações voluptuosas que terão deixado na pelica os contornos do pezinho desconhecido.
Não fora, porém, a perfeição da obra, nem mesmo a excessiva delicadeza da forma, o que seduzira o nosso leão; foram sobretudo os debuxos suaves, as ondulações voluptuosas que teve deixado na pelica os contornos do pezinho desconhecido.
Apesar de não ser, porém, a perfeição da obra, nem mesmo a excessiva delicadeza da forma, o que seduz o nosso leão; é sobretudo os debuxos suaves, as ondulações voluptuosas que têm deixado na pelica os contornos do pezinho desconhecido.
Não seria, porém, a perfeição da obra, nem mesmo a excessiva delicadeza da forma, o que seduzira o nosso leão; serão sobretudo os debuxos suaves, as ondulações voluptuosas que terão deixado na pelica os contornos do pezinho desconhecido.