UnB 2022

    Na verdade, o mestre fitava-nos. Como era mais severo para o filho, buscava-o muitas vezes com os olhos, para trazê-lo mais aperreado. Mas nós também éramos finos; metemos o nariz no livro, e continuamos a ler. Afinal cansou e tomou as folhas do dia, três ou quatro, que ele lia devagar, mastigando as ideias e as paixões. Não esqueçam que estávamos então no fim da Regência, e que era grande a agitação pública. Policarpo tinha decerto algum partido, mas nunca pude averiguar esse ponto. O pior que ele podia ter, para nós, era a palmatória. E essa lá estava, pendurada do portal da janela, à direita, com os seus cinco olhos do diabo. Era só levantar a mão, despendurá-la e brandi-la, com a força do costume, que não era pouca. E daí, pode ser que alguma vez as paixões políticas dominassem nele a ponto de poupar-nos uma ou outra correção. Naquele dia, ao menos, pareceu-me que lia as folhas com muito interesse; levantava os olhos de quando em quando, ou tomava uma pitada, mas tornava logo aos jornais, e lia a valer.

    No fim de algum tempo - dez ou doze minutos - Raimundo meteu a mão no bolso das calças e olhou para mim.

 

    - Sabe o que tenho aqui?

    - Não.

    - Uma pratinha que mamãe me deu.

    - Hoje?

    - Não, no outro dia, quando fiz anos...

    - Pratinha de verdade?

    - De verdade.

    (...) Você quer esta?

    Minha resposta foi estender-lhe a mão disfarçadamente, depois de olhar para a mesa do mestre. Raimundo recuou a mão dele e deu à boca um gesto amarelo, que queria sorrir. Em seguida propôs-me um negócio, uma troca de serviços; ele me daria a moeda, eu lhe explicaria um ponto da lição de sintaxe. Não conseguira reter nada do livro, e estava com medo do pai. E concluía a proposta esfregando a pratinha nos joelhos... Tive uma sensação esquisita. Não é que eu possuísse da virtude uma ideia antes própria de homem; não é também que não fosse fácil em empregar uma ou outra mentira de criança. Sabíamos ambos enganar ao mestre. A novidade estava nos termos da proposta, na troca de lição e dinheiro, compra franca, positiva, toma lá, dá cá; tal foi a causa da sensação. Fiquei a olhar para ele, à toa, sem poder dizer nada. Compreende-se que o ponto da lição era difícil, e que o Raimundo, não o tendo aprendido, recorria a um meio que lhe pareceu útil para escapar ao castigo do pai. Se me tem pedido a coisa por favor, alcançá-la-ia do mesmo modo, como de outras vezes, mas parece que era lembrança das outras vezes, o medo de achar a minha vontade frouxa ou cansada, e não aprender como queria, - e pode ser mesmo que em alguma ocasião lhe tivesse ensinado mal, - parece que tal foi a causa da proposta. O pobre-diabo contava com o favor, — mas queria assegurar-lhe a eficácia, e daí recorreu à moeda que a mãe lhe dera e que ele guardava como relíquia ou brinquedo; pegou dela e veio esfregá-la nos joelhos, à minha vista, como uma tentação... Realmente, era bonita, fina, branca, muito branca; e para mim, que só trazia cobre no bolso, quando trazia alguma coisa, um cobre feio, grosso, azinhavrado…

    (...)

    De repente, olhei para o Curvelo e estremeci; tinha os olhos em nós, com um riso que me pareceu mau. Disfarcei; mas daí a pouco, voltando-me outra vez para ele, achei-o do mesmo modo, com o mesmo ar, acrescendo que entrava a remexer-se no banco, impaciente. Sorri para ele e ele não sorriu; ao contrário, franziu a testa, o que lhe deu um aspecto ameaçador. O coração bateu-me muito.

    - Precisamos muito cuidado, disse eu ao Raimundo.
    - Diga-me isto só, murmurou ele. 

    Fiz-lhe sinal que se calasse; mas ele instava, e a moeda, cá no bolso, lembrava-me o contrato feito. Ensinei-lhe o que era, disfarçando muito; depois, tornei a olhar para o Curvelo, que me pareceu ainda mais inquieto, e o riso, dantes mau, estava agora pior. Não é preciso dizer que também eu ficara em brasas, ansioso que a aula acabasse; mas nem o relógio andava como das outras vezes, nem o mestre fazia caso da escola; este lia os jornais, artigo por artigo, pontuando-os com exclamações, com gestos de ombros, com uma ou duas pancadinhas na mesa. E lá fora, no céu azul, por cima do morro, o mesmo eterno papagaio, guinando a um lado e outro, como se me chamasse a ir ter com ele. Imaginei-me ali, com os livros e a pedra embaixo da mangueira, e a pratinha no bolso das calças, que eu não daria a ninguém, nem que me serrassem; guardá-la-ia em casa, dizendo a mamãe que a tinha achado na rua. Para que me não fugisse, ia-a apalpando, roçando-lhe os dedos pelo cunho, quase lendo pelo tato a inscrição, com uma grande vontade de espiá-la.

    - Oh! seu Pilar! bradou o mestre com voz de trovão.

Machado de Assis. Conto de escola. In: Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, v. II, 1994.

Muitas das narrativas de Machado de Assis são conhecidas por referências que transmitem uma noção de tempo e espaço bem localizáveis, como é o caso do morro do livramento ou ruas da capital fluminense, assim como episódios históricos do século XIX.

 

Com base nos elementos narrativos que compõem o trecho apresentado do Conto de Escola, assinale a opção correta.

a

Nas narrativas, o tempo cronológico não pode coexistir nem concorrer com o tempo psicológico, sendo este determinado pelas emoções e dados subjetivos, como o medo ou a curiosidade de uma das personagens, que não influenciam o fluxo da narrativa.

b

O tempo histórico é identificado neste trecho pela expressão “no fim da Regência” (primeiro parágrafo), que contextualiza o interesse do professor pelos jornais e se apresenta como insignificante do ponto de vista do narrador adulto. A relevância dessa referência para a narrativa é reconhecida pelo narrador apenas quando criança.

c

A escola e suas circunstâncias características formam um espaço social relevante para os conflitos vividos pelas personagens, o que possibilita a mescla entre os tempos psicológico, cronológico e histórico na narrativa.

d

Para o narrador, a escola se manifesta como uma prisão. Isso constitui o seu espaço interno e externo. O espaço assim caracterizado se observa paralelamente para todas as demais personagens, podendo ser compreendido como um caso típico do universalismo machadiano, em que traços mais gerais da natureza humana se impõem ao dado particular.

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A
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