UERJ 2012/1

Memórias do cárcere

 

Resolvo-me a contar, depois de muita hesitação, casos passados há dez anos − e, antes de

começar, digo os motivos por que silenciei e por que me decido. Não conservo notas: algumas

que tomei foram inutilizadas, e assim, com o decorrer do tempo, ia-me parecendo cada vez mais

difícil, quase impossível, redigir esta narrativa. Além disso, julgando a matéria superior às minhas

[5]  forças, esperei que outros mais aptos se ocupassem dela. Não vai aqui falsa modéstia, como

adiante se verá. Também me afligiu a ideia de jogar no papel criaturas vivas, sem disfarces, com

os nomes que têm no registro civil. Repugnava-me deformá-las, dar-lhes pseudônimo, fazer do

livro uma espécie de romance; mas teria eu o direito de utilizá-las em história presumivelmente

verdadeira? Que diriam elas se se vissem impressas, realizando atos esquecidos, repetindo

[10]  palavras contestáveis e obliteradas?

(...)

O receio de cometer indiscrição exibindo em público pessoas que tiveram comigo convivência

forçada já não me apoquenta. Muitos desses antigos companheiros distanciaram-se, apagaramse.

Outros permaneceram junto a mim, ou vão reaparecendo ao cabo de longa ausência, alteramse,

completam-se, avivam recordações meio confusas − e não vejo inconveniência em mostrá-los.

(...)

[15]  E aqui chego à última objeção que me impus. Não resguardei os apontamentos obtidos em

largos dias e meses de observação: num momento de aperto fui obrigado a atirá-los na água.

Certamente me irão fazer falta, mas terá sido uma perda irreparável? Quase me inclino a supor

que foi bom privar-me desse material. Se ele existisse, ver-me-ia propenso a consultá-lo a cada

instante, mortificar-me-ia por dizer com rigor a hora exata de uma partida, quantas demoradas

[20]  tristezas se aqueciam ao sol pálido, em manhã de bruma, a cor das folhas que tombavam das

árvores, num pátio branco, a forma dos montes verdes, tintos de luz, frases autênticas, gestos,

gritos, gemidos. Mas que significa isso? Essas coisas verdadeiras podem não ser verossímeis.

E se esmoreceram, deixá-las no esquecimento: valiam pouco, pelo menos imagino que valiam

pouco. Outras, porém, conservaram-se, cresceram, associaram-se, e é inevitável mencioná-

[25]  las. Afirmarei que sejam absolutamente exatas? Leviandade. (...) Nesta reconstituição de fatos

velhos, neste esmiuçamento, exponho o que notei, o que julgo ter notado. Outros devem possuir

lembranças diversas. Não as contesto, mas espero que não recusem as minhas: conjugam-se,

completam-se e me dão hoje impressão de realidade. Formamos um grupo muito complexo, que

se desagregou. De repente nos surge a necessidade urgente de recompô-lo. Define-se o ambiente,

[30]  as figuras se delineiam, vacilantes, ganham relevo, a ação começa. Com esforço desesperado

arrancamos de cenas confusas alguns fragmentos. Dúvidas terríveis nos assaltam. De que modo

reagiram os caracteres em determinadas circunstâncias? O ato que nos ocorre, nítido, irrecusável,

terá sido realmente praticado? Não será incongruência? Certo a vida é cheia de incongruências,

mas estaremos seguros de não nos havermos enganado? Nessas vacilações dolorosas, às vezes

[35]  necessitamos confirmação, apelamos para reminiscências alheias, convencemo-nos de que a

minúcia discrepante não é ilusão. Difícil é sabermos a causa dela, desenterrarmos pacientemente

as condições que a determinaram. Como isso variava em excesso, era natural que variássemos

também, apresentássemos falhas. Fiz o possível por entender aqueles homens, penetrar-lhes

na alma, sentir as suas dores, admirar-lhes a relativa grandeza, enxergar nos seus defeitos a

[40]  sombra dos meus defeitos. Foram apenas bons propósitos: devo ter-me revelado com frequência

egoísta e mesquinho. E esse desabrochar de sentimentos maus era a pior tortura que nos podiam

infligir naquele ano terrível.

 

GRACILIANO RAMOS Memórias do cárcere. Rio de Janeiro: Record, 2002. 

Nesta reconstituição de fatos velhos, neste esmiuçamento, exponho o que notei, o que julgo ter notado. (ℓ. 25-26)
 
O uso do verbo “julgar”, no fragmento acima, promove uma correção do que estava dito imediatamente antes.
 
Essa correção é importante para o sentido geral do texto porque:

a

questiona a validade de romancear fatos

b

minimiza o problema de narrar a memória

c

valoriza a necessidade de resgatar a história

d

enfatiza a dificuldade de reproduzir a realidade

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D
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