Me dá licença, minha senhora
Clarice Lispector
Eu disse uma vez que escrever é uma maldição. Não me lembro exatamente por que disse, mas disse com sinceridade.
Hoje repito: é uma maldição. Mas, maldição que salva. Não estou me referindo muito a escrever para jornal. Mas àquilo que eventualmente pode se transformar em conto ou romance. Ou novela (acabei uma agora).
É uma maldição porque obriga e arrasta como um vício penoso, do qual é quase impossível se livrar, pois nada o substitui. E é uma salvação. Salva a alma presa, salva a pessoa que se sente inútil, salva o dia que se vive e que nunca se entende a menos que se escreva.
Escrever é tentar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o fim o que permaneceria apenas vago e sufocador.
Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada. Pena que só sei escrever quando espontaneamente a “coisa” vem. Fico, portanto, à mercê do tempo. E, entre um escrever e outro, passam anos. Anos de carência. (...)
Falei em carência. Pior que carência é o súbito cansaço de tudo. É uma espécie de fartura, parece que já se teve tudo e que não se quer mais nada. Cansaço, por exemplo, dos Beatles. E cansaço também daqueles que não são os Beatles. Cansaço inclusive de minha liberdade íntima que foi tão duramente conquistada. Cansaço de amar um homem e de repente ver que ele não merecia esse amor: ele era grosseiro, arrogante e covarde. Melhor seria o ódio. (...)
Não sou dada a festas. Mas estive numa reunião, pouco antes da morte de Guimarães Rosa. Ele disse que, quando não estava se sentindo bem, quando estava deprimido, relia trechos do que já havia escrito. Espantaram-se os presentes quando eu disse que detesto reler coisas minhas. Alguém observou que o engraçado é que parece que eu não quero ser escritora. De algum modo é verdade, e não sei por quê. Até ser chamada de escritora me encabula. (...)
Guimarães Rosa então me disse uma coisa que jamais esquecerei: disse que me lia “não para a literatura e sim para a vida”. E citou frases e frases minhas, que ele sabia de cor e eu não reconheci nenhuma. Acho que sou mesmo esquisita, mas o que há de se fazer? (...)
Uma vez me ofereceram a oportunidade de fazer uma crônica de comentários sobre acontecimentos, só que essa crônica seria feita para mulheres e a estas dirigidas. Terminou dando em nada a proposta, felizmente. Digo felizmente porque desconfio de que a coluna ia descambar para assuntos estritamente femininos, considerando “feminino” o que geralmente os homens e mesmo as próprias humildes mulheres consideram: como se mulher fizesse parte de uma comunidade fechada, à parte, e de certo modo segregada (...).
LISPECTOR, Clarice. Correio Feminino. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.
Indique a alternativa INCORRETA sobre o texto “Me dá licença, minha senhora”:
O texto pode ser classificado como pertencente à tipologia “escrita de si”.
A autora apresenta opiniões contraditórias sobre a condição autoral, que resultam na aversão ao rótulo de escritora e ao esquecimento proposital dos próprios livros publicados.
A escrita literária é impositiva como uma função orgânica ou um vício, mas só se realiza quando a inspiração ocasionalmente chega para o escritor.
A autora atribui à literatura funções próximas das que são características da filosofia e da psicanálise, ao afirmar que “escrever é tentar entender” e “salva a alma presa, salva a pessoa que se sente inútil, salva o dia”.
O tédio de viver é, juntamente com a falta de inspiração, os principais entraves para a produção literária.